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quarta-feira, 12 de junho de 2019

Olhos D'água e O Sol na Cabeça: Uma análise sobre o racismo estrutural - Parte 2




    Então, meus amados, como vamos?  Confortáveis e hidratados? Espero que estejam, pois continuaremos nossa jornada de autocrítica e questionamentos capciosos nesta que é a parte 2 deste artigo e que ficou com um tamanho COLOSSAL...Além da pesquisa muito extensa por conta do contexto desses dois livros, parece que cada vez que eu piscava surgia algo a ser comentado então, paciência. Sugiro uma poltrona confortável e uma garrafa de café ou mate, porque o negócio vai ser osso aqui.


    Enquanto na parte 1, eu analisei "Olhos d'água", da escritora Conceição Evaristo, agora chegou a hora de darmos uma olhada em "O sol na cabeça", do Geovani Martins.






    Nascido em 1991, em Bangu no Rio de Janeiro, Geovani morou na Rocinha e no Vidigal, vivendo e crescendo em meio a experiências que moldaram sua memória afetiva e influenciaram sua escrita. Assim como Conceição Evaristo, que conciliava os estudos com o trabalho de empregada doméstica, Geovani exerceu várias atividades: desde "homem-placa", até garçom de buffet infantil e atendente de lanchonete. Infelizmente, os dois autores estão longe de serem um retrato da mobilidade social dos brasileiros e se encaixam muito mais como admiráveis exceções:

    "Hoje, pensando sobre todas essas motivações, não posso descartar uma, determinante: o desespero. Estava com 24 anos, desempregado, sem profissão, sendo obrigado a mudar da casa onde vivia. Naquele ano de 2015 havia participado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), apresentando com meus colegas as revistas Setor x, produzidas na Rocinha, em Manguinhos e no Complexo do Alemão. Muita gente gostou da mesa e veio falar com a gente, desde possíveis leitores a profissionais do mercado editorial.Na época, eu não tinha um trabalho pronto para mostrar, não tinha nem mesmo um projeto em andamento, e isso me fez sair de Paraty com a determinação de que, quando aparecesse outra oportunidade, estaria preparado." Geovani Martins em entrevista à Época.

    Ao longo de treze contos publicados nessa coletânea cujos direitos foram vendidos para nove países, o autor destrincha a realidade crua com a mesma destreza com que pincela momentos de infância com os quais muita gente (principalmente se for da geração 90) vai se identificar. E tudo ao mesmo tempo em que joga com a linguagem falada nos morros e no asfalto, nas periferias e nos bairros nobres.



    O conto que abre o livro se chama "Rolézim", e nossa... como eu vou dizer, eu imaginava que teria algumas gírias e tal, e precisaria de um pouco de pesquisa pra me habituar, mas que baile eu levei. Foram duas ou três leituras até que eu entendesse alguns pormenores do que ocorre no texto.

    Como o vídeo acima explica, muitas das gírias são facilmente interpretadas pelo contexto e servem pra enriquecer e ambientar a narrativa, que fala de um grupo de garotos saindo do morro para simplesmente, irem à praia espantar o calor. Nada mais comum e tranquilo que isso, não fosse o fato de que eles são negros e pobres e estão indo à praia justamente no verão de 2015, época em que os arrastões na orla carioca eram notícia, assim como os rolêzinhos nos shoppings. Antes de cair em generalizações ao analisar o conto, porém, precisamos entender algumas coisas sobre as políticas de segurança em voga na época e atualmente.


Rolézim, ou, o cerceamento do direito de ir e vir a pretexto da "segurança"



    No artigo 5º, inciso XV da constituição federal de 1988:

   "É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou sair com seus bens. Todo cidadão tem direito de se  locomover livremente nas ruas, nas praças, nos lugares públicos, sem temor de serem privados de locomoção”.

    É claro que, assim, como muitos outros direitos garantidos pela constituição, o direito de ir e vir está limitado às normas sociais e aos termos da lei, além é claro, das próprias condições de infraestrutura dos locais públicos. De pessoas com necessidades especiais a moradores de comunidades dominadas por tráfico e milícias, o cidadão brasileiro tem seu direito de locomoção sempre em risco. Uma das facetas dessa dificuldade é a repressão policial, fortemente atrelada ao racismo, diga-se de passagem.


Campanha "Jovem negro vivo", da Anistia Internacional.

    Por mais que os céticos sobre a força do racismo no Brasil (acreditem, eles existem) insistam em negar, a abundância de casos só no início deste ano comprovam essa triste realidade: De acordo com o Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, a cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil.(fonte). Alguém poderia dizer que esse número não é tão expressivo assim, que sempre tem "gente morrendo" todos os dias, mas quando se considera que cerca de 30 mil pessoas morrem todo ano vítimas de assassinato, seria coincidência que 23 mil dessas pessoas são negras?

    "De 2005 a 2015, enquanto a taxa de homicídios por 100 mil habitantes negros subiu 18,2%, a mesma taxa teve queda de 12,2% entre habitantes não-negros." fonte




    Tais números só provam que o racismo é uma ferida aberta no país e em praticamente todos os seus níveis de funcionamento. A questão dos rolêzinhos é apenas um dos exemplos do quase cômico classicismo e preconceito da classe média/alta brasileira, que teria facilmente rendido uma daquelas reportagens do bizarríssimo "Documento Especial", finado programa dos anos 90:

    "Desde o fim de 2013, jovens têm organizado encontros pelas redes sociais, principalmente, em shoppings da capital paulista e da Grande São Paulo. Os eventos ficaram conhecidos como "rolezinhos". A primeira iniciativa a ganhar repercussão aconteceu no Shopping Metrô Itaquera, Zona Leste de São Paulo, em 8 dezembro.  Algumas lojas fecharam com medo de saques e o centro comercial encerrou o expediente mais cedo. [...] Os organizadores definem os encontros como um "grito por lazer" e negam qualquer intenção ilegal, mas viraram alvo de investigações policiais.

    Em 8 de dezembro, o “rolezinho” no Shopping Metrô Itaquera reuniu cerca de seis mil adolescentes, segundo a administração do centro comercial.  Houve tumulto, a polícia foi acionada e o shopping fechou uma hora e meia mais cedo. Na época, pessoas que se identificaram como clientes e lojistas comentaram na página do Facebook do shopping que houve arrastão e furtos naquela noite de sábado. A administração negou a onda de furtos. Na época, o G1 apurou que três pessoas foram presas por roubo."  (fonte)




    É incrível como a média dos comentários desse vídeo no youtube são perfeitamente encaixáveis num daqueles memes da "Barbie e Ken, cidadãos de bem". Na visão dos comentaristas, o jovem da periferia tem apenas que estudar pra melhorar de vida, mas organizar grupos pra ir em shoppings é coisa para quem já está bem de vida, coisa de rico.



    Ok... À primeira vista, esse parece ser um argumento razoável: quem é pobre precisa mesmo se esforçar mais que pessoas de outras classes sociais para "melhorar de vida", ter um estudo, ter seu emprego, sua casa, enfim se sustentar. Mas por que exatamente o lazer deveria ser um privilégio apenas de quem "já chegou lá"? Por que não ter mais parques públicos, praças, quadras de esportes, piscinas?


    Me lembra muito a situação daquela mãe que, ao ser entrevistada sobre boatos de que o bolsa família seria encerrado, disse que o valor do programa (134 reais na época) não dava pra comprar uma calça para a filha de 16 anos.

    Muita gente, muita gente mesmo, usou a fala dela como pretexto pra criticar o benefício e contestar a real necessidade das pessoas que o recebem, o que mostra como o grosso da classe média "remediada" vê a situação: segundo esse pensamento, quem é pobre deve se contentar em ter as coisas básicas, comida, estudo. É claro que ninguém vai questionar isso, mas por que só quem é rico pode dar uma calça descolada pra filha? Se a mulher quiser gastar o dinheiro que ela recebe com isso e se virar nos trinta pra dar conta das despesas depois, o direito é dela!


“É obsceno, mas é bom ter algo que poucos têm”. Sung, Jung

    A verdade é que 134 reais (valor, provavelmente ainda abaixo da inflação) não dão pra nada, nem pras necessidades básicas. E mesmo assim, essa mulher queria dar uma calça cara para a filha, porque todo mundo quer coisas boas. É ser muito pretensioso dizer às pessoas como elas devem gastar o dinheiro que recebem, mesmo que esse dinheiro seja "uma esmola". Consumismo é uma coisa controversa, e fica ainda mais controverso quando se admite que "alguns" tem mais direito a possuir que "outros". Tá cheio de gente classe média/alta se endividando pra viver a aparência de um status maior do que realmente tem, mas o pecado é só quando o pobre quer fazer isso, daí tem que acabar com "bolsa esmola"; Tá serto!

    Eu nem vou entrar no mérito de discutir os resultados do Bolsa Família: as estatísticas mostram que, mesmo o valor do benefício não sendo muito alto, trouxe resultados muito positivos com baixo custo, tendo sido inclusive premiado pela ONU e exportado para 52 países. (fonte)
 


    Voltando ao conto, na época dos arrastões em 2015, o então governador do Estado, Fernando Pezão, e seu secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, defenderam que "jovens suspeitos" fossem impedidos de chegar às praias, contrariando o Ministério Público do RJ, que recomendava apreensões apenas em casos de flagrantes.  (fonte)

    "Em 1992, a palavra “arrastão” se popularizou no país, depois de uma onda de roubos e furtos nas praias do Rio de Janeiro. Duas décadas depois o problema volta ao noticiário, desta vez com retoques: de um lado, gangues da Zona Sul se unem para reprimir os roubos por conta própria; do outro, na outra ponta, os autores dos roubos exibem nas redes sociais o espólio roubado e anunciam outros arrastões. O que continua igual a 23 anos atrás é a atitude do poder público diante do problema. Governos do Estado e Prefeitura mostram sintonia em ignorar a raiz social dos arrastões no Rio, como se o problema não tivesse relação com a desigualdade social endêmica na sociedade brasileira." (fonte)

 

    No caso dos shoppings, o respeito à propriedade privada e a autonomia do local privado foi usado como desculpa para que os seguranças barrassem as pessoas, não por verem que estas estavam em grupos muito grandes, mas principalmente pela "aparência" desses grupos.

    "Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das periferias da Grande São Paulo está sendo criminalizada?
Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram superar a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens negros e pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do gueto. E desejar objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela plana, símbolos da chamada classe C ou “nova classe média”, parcela da população que ascendeu com a ampliação de renda no governo Lula, mas marcas de luxo, as grandes grifes internacionais, aqueles que se pretendem exclusivas para uma elite, em geral branca."  (fonte)


    No caso das praias, a desculpa usada para barrar pessoas e apreender menores foi a de garantir a segurança pública. E para frequentadores de praias apavorados com a criminalidade, nada poderia soar melhor: por jovens "suspeitos" de um crime ainda não cometido, vejam bem, o secretário de segurança e o governador entendem "suspeitos" como menores sem dinheiro para gastar e sem identidade, porque TODO MUNDO LEVA A CARTEIRA DE IDENTIDADE QUANDO VAI À PRAIA.Quem não leva é vagabundo, claro. 


    Nesse contexto, o protagonista pega um ônibus com outros três amigos, pagando a passagem de ida e planejando dar um calote na volta.


    "Se não fosse a minha mãe eu ia meter várias paradas na pista, sem neurose, só de raiva. Foda é que a coroa é neurótica. Ainda mais depois do bagulho que aconteceu com meu irmão. Ela sempre me manda o papo de que se eu for parar no Padre Severino ela nunca mais olha na minha cara. Bagulho é doido!" (p.13, Rolézim).

Praia do Arpoador e suas águas cristalinas




    Ao chegar, eles se refrescam no mar e fazem o mesmo que muitos jovens quando fora de supervisão, que é ficar bem alto batendo palma pro nascer do sol:

    "Chegamo na praia com o sol estalando, várias novinha pegando uma cor com a rabeta pro alto, mó lazer. Saí voado pra água, mandando vários mergulho neurótico, furando as onda.[...] Nem acreditei quando voltei e o bonde todo com mó cara de cu. O bagulho era que tinha uns cana ali parado, escoltando nós. Tava geral na intenção de apertar o baseado, e os cana ali. [...] 


    Quando finalmente os filho da puta decidiu meter o pé, outro perrengue: ninguém tinha seda! Mó parada, né não, menó? Vários pulmão de aço no bagulho e nenhuma seda. [...] Ninguém queria pedir pros maconheiro playboy lá da praia, tudo mandadão, cheio de marra. Quando eles tão sozinho, olha pra tu tipo que com medo, como se tu fosse sempre na intenção de roubar eles. Aí quando tão de bondão, eles olha tipo que como fosse juntar ni tu. É foda."( p. 12 e 13).





    Claro que as coisas não são tão simples quando não se é branco e classe média/rico, então a P.M. logo aparece para fazer marcação cerrada sobre os garotos, só os pobres, é claro. Mas não fazem seu trabalho tão bem assim, pois outro grupo de garotos faz um arrastão nos "playboys".

    Vendo que anoiteceu, e na maior larica o grupo de amigos decide ir embora pra casa, quando são surpreendidos por policiais revistando outro grupo de menores:

    "Quando nós tava quase passando pela fila que eles armaram com os menó de cara pro muro, o filho da puta manda nós encostar também. Aí veio com um papo de que quem tivesse sem dinheiro da passagem ia pra delegacia, quem tivesse com muito mais que o da passagem ia pra delegacia, quem tivesse sem identidade ia pra delegacia. Porra, meu sangue ferveu na hora, sem neurose. Pensei, tô fodido; até explicar pra coroa que focinho de porco não é tomada, ela já me engoliu na porrada. Não pensei duas vezes, larguei o chinelo lá mermo e saí voado." (p. 15)


    E eis que temos o momento em que um garoto prefere arriscar tomar um tiro da polícia pra escapar da humilhação de ser levado pra uma delegacia e levar uma coça da mãe e possivelmente ser visto como um criminoso por ela. Seria hilário se não fosse trágico e muito real.


Ex- escravos no início do século XX, Rio de Janeiro


 

    O Estado atuando diretamente contra o livre trânsito de um segmento específico da população pelo espaço urbano infelizmente não é nenhuma novidade, como diversos documentos históricos atestam:

    "As ações discriminatórias aconteciam habitualmente, como indica um texto do jornal Gazeta de Campinas, de 3 de março de 1900, reproduzido no livro: “Não se pode mais sair com a família sem que hordas de negros invadam as ruas, especialmente a rua Barão de Jaguara. É preciso coibir as cáfilas antes que o mal cresça”.


    No texto, o jornal recriminava o direito de cidadãos negros de percorrer as ruas ao lado dos brancos. Para o jornal, o lugar deles não era junto a famílias brancas. “Coibia-se o direito de ir e vir dos afrodescendentes e manifestava-se a não possibilidade de convívio no mesmo espaço com os brancos. A repreensão se fazia inclusive pelo uso de adjetivos ofensivos comparáveis aos utilizados para animais e criminosos.”" (fonte).


    De colônia, o Brasil se tornou império e depois república, mas a situação dos negros continuou a ser desprezada pelos governantes, até chegar à realidade atual. O vídeo abaixo dá um panorama de como o racismo foi institucionalizado no país desde essa época:





    “O fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações." (fonte

    No conto "Espiral", temos o narrador protagonista, um jovem da periferia que ao andar na rua, se percebe sendo motivo de medo dos pedestres e moradores de um bairro nobre próximo.

Favela da Rocinha

    "É foda sair do beco, dividindo com canos e mais canos o espaço da escada, atravessar as valas abertas, encarar os olhares dos ratos, desviar a cabeça dos fios de energia elétrica, ver seus  amigos de infância portando armas de guerra, pra depois de quinze minutos estar de frente pra um condomínio com plantas ornamentais enfeitando o caminho das grades, e então assistir adolescentes fazendo aulas particulares de tênis. É tudo muito próximo e muito distante. E, quanto mais crescemos, maiores se tornam os muros."

    Humilhado e revoltado com essa reação de pessoas desconhecidas a quem nunca fez nada, ele acaba assumindo essa máscara de "potencial assaltante" apenas para ver até que ponto a coisa chegaria:


    "Nunca esquecerei da minha primeira perseguição. Tudo começou do jeito que eu mais detestava: Quando eu, de tão distraído, me assustava com o susto da pessoa e, quando via, era eu o motivo, a ameaça. Prendi a respiração, o choro, me segurei, mais de uma vez, pra não xingar a velha que visivelmente se incomodava de dividir comigo, e só comigo o ponto de ônibus. No entanto, dessa vez, ao invés de sair de perto, como sempre fazia, me aproximei. Ela tentava olhar para trás sem mostrar que estava olhando, eu ia chegando mais perto. [...] Não sei quanto tempo durou tudo aquilo, provavelmente não mais que alguns minutos, mas, para nós, era como se fosse uma vida. Até que ela entrou na cafeteria.

    Passado o turbilhão, fiquei como nojo de ter ido tão longe, lembrando da minha avó, imaginando que aquela senhora devia ter netos. Porém, esse estado de culpa durou pouco, logo lembrei que aquela mesma velha, que tremia de pavor antes mesmo que eu desse qualquer motivo, com certeza não imaginava que eu também tivera avó, mãe, família, amigos, essas coisas todas que fazem nossa liberdade valer muito mais do que qualquer bolsa, nacional ou importada." (p.18 e 19).

    Esse é um conto interessante por mostrar os absurdos do preconceito e do abismo social que cria e alimenta a paranoia racista do "cidadão de bem" e, interpretando um pouco além, a paranoia racista das forças policiais, que veem uma arma no lugar de um guarda-chuva ou furadeira, baseando-se no tom de pele de quem os carrega. A situação começa pequena e toma proporções cada vez maiores, apontando com a simbologia da espiral para um contraste social e racial aparentemente infinito e imutável que forma as populações das metrópoles brasileiras.

Rodrigo Alexandre da Silva Serrano foi morto pela PM ao ter guarda-chuva confundido com fuzil.


    Sobre o caso:

    "Segundo moradores, policiais da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da comunidade teriam atirado no homem por terem confundido seu guarda-chuva com um fuzil e o “canguru” com um colete à prova de balas.

    Rodrigo Alexandre era casado há sete anos, tinha dois filhos, um de quatro anos e outro de 10 meses, e trabalhava como vigia em um bar em Ipanema, também zona sul do Rio." (fonte)


    Infelizmente, casos assim estão longe de serem raros como alguns podem desonestamente supor; mudam os governadores e presidentes, mas o problema permanece, e fica ainda pior quando os nossos próprios representantes e até outros setores da população se negam a admiti-lo, gerando o segundo ponto abaixo, que é...


O culto às armas e a Roleta-Russa da Intervenção Militar no Rio de Janeiro


    Em "Roleta-Russa", um garoto de dez anos pega o revólver do pai segurança e o usa para brincar rua. O que poderia ser uma tragédia anunciada por pouco não se concretiza:


    "Não foi a primeira vez que Paulo brincou com a arma do pai. Toda manhã, logo que volta do banheiro, ele pega o ferro na terceira gaveta da cômoda que sustenta a televisão. Gosta de sentir o peso do revólver, de analisar cada pedaço do objeto, de imaginá-lo em ação. Sobre a adrenalina de mexer na arma bem ali na frente do pai, que dorme na cama ao lado, não consegue definir o que sente, se é bom ou ruim. [...] O menino sem respirar, a arma na mão, os olhos que podem se abrir a qualquer momento. Correm assim as manhãs." (p.24) 


Homenagem às vítimas do massacre na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano.


    Não precisa ser um gênio para entender que além dos temas referentes à infância e a fantasia de poder que as armas exercem nos meninos, sendo eles moradores de favelas ou não, outro tema é o controle de armas. O pai do conto acredita que pode correr o risco de ter uma arma em casa sem trancá-la, confiando que o filho jamais mexerá nela apenas porque o advertiu que não fizesse isso:


    "Almir costuma dizer que prefere ganhar o filho pelo respeito, porque não confia em relações orquestradas pelo medo. [...] Na tentativa de não usar a força física como base na educação, joga com o filho. Utiliza, sem nenhum peso na consciência, de ferramentas como a culpa e o remorso para esculpir a personalidade do menino. Por sua vez, Paulo não sabe onde começa nem onde termina o respeito, o medo, a vergonha e a admiração que sente pelo pai."


    Como o próprio título faz referência, o conto brinca com o suspense e a vontade do leitor em saber o que acontecerá a seguir, se o pai vai descobrir o que o filho anda fazendo, se o menino vai acabar atirando em alguém ou em si próprio e isso vai até o final, que fica em aberto. Assim, cada leitor pode imaginar o destino do personagem, que na minha concepção de valores seria mais ou menos esse:



    Brincadeiras à parte, é claro que eu também não acredito na eficácia desses métodos. Mas, eu acredito sim que a grande maioria da população brasileira não tem preparo nem psicológico para manusear ou possuir armas de fogo com segurança. Esse é um debate que precisa de  amadurecimento maior da opinião pública, não no sentido de proibir, mas de controlar a posse e o porte. Em países cuja legislação é muito permissiva quanto ao tipo e o potencial destrutivo das armas que um cidadão pode ter, inúmeras tragédias são facilitadas. Isso, e a cultura enraizada na crença de que a posse e porte de armas sozinhos solucionam o problema da criminalidade.




Governador do Rio, Wilson Witzel, posa com quadro feito com balas de fuzil. E não, não é montagem do Sensacionalista (fonte)

    Não acho que seja uma questão de levantar bandeiras contra ou a favor das armas, mas sim de se perguntar porque o controle delas no Brasil é tão falho que temos traficantes com armas de guerra muito mais poderosas do que a maioria dos policiais usa, bem como milicianos vendendo armas e oferecendo segurança a bandidos. Mais armas seriam mesmo a solução?

Anúncio loja de departamentos em revista nos anos de 1980.(fonte)


    Temos uma cultura que, ora glorifica a violência, ora a justifica como sendo um "mal menor" para se alcançar uma pretensa "segurança". Resta perguntar: segurança pra quem?


Estudante Pedro Gonzaga, estrangulado até a morte por um segurança do supermercado Extra. O assassino alegou ter se sentido "ameaçado" por Pedro, apesar de estar armado e com os colegas ao lado.



    Esse debate se acirra ainda mais com a proposta do projeto de "Lei Anticrime" do ministro da justiça, Sergio Moro. A proposta prevê modificações no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Crimes Hediondos. Se por um lado esse pacote de mudanças angaria defensores motivados pelas mudanças de caráter duvidoso combativo à corrupção política, por outro lado ela é alvo de críticas merecidas por seu vago conceito de legítima defesa para agentes de segurança pública, possibilitando brechas que podem ser usadas para "dar carta branca" à polícia para matar indiscriminadamente.

    "A retirada da proposta de criminalização do caixa 2 do pacote da Lei Anticrime também recebeu muitas críticas. A oposição aponta que a decisão demonstra a falta de interesse, por parte do governo, em combater a corrupção. Para o deputado Alessandro Molon (Rede-MG) demonstrou sua indignação com a mudança:

“Por que o governo decidiu dividir o pacote sinalizando para o Congresso que quer salvar uma parte do projeto enquanto permite que a outra afunde, justamente a mais importante para o combate à corrupção?”"





    "Para justificar a retirada do trecho sobre Caixa 2, Moro declarou, em coletiva de imprensa no Palácio do Planalto, que:

“Caixa dois não é corrupção. Existe o crime de corrupção, existe um crime de caixa dois. São dois crimes. Os dois crimes são graves”."

    Hum-hum, entendi; depois de um "casamento" (ainda mais com alguém como Bolsonaro), tudo muda, né?

    Lembrando que, em 2016, Dilma também entregou ao Congresso um pacote anticorrupção, com diversas propostas para fortalecer o combate ao problema. E nesse projeto, o Caixa 2 era previsto com pena de 3 a 6 anos. Incrível como as pessoas mudam...




    As imagens da operação policial onde 14 suspeitos foram sumariamente executados pela PM no morro do Fallet, região central do Rio rodaram o mundo. Segundo os testemunhos de moradores, o que ocorreu lá não foi nada menos que uma matança: os suspeitos já haviam se rendido, não ofereciam risco aos agentes, mas foram mortos por tiros à queima-roupa e na cabeça, sem a menor chance de defesa, muito menos averiguação de crimes, nada. O que ocorreu ali não foi um grupo de policiais matando um grupo de traficantes simplesmente, foi um grupo de policiais matando pessoas que podiam ou não ser traficantes, podiam ou não ser criminosos. E mesmo que fossem, no momento em que eles se rendem, não há a menor justificativa para execuções sumárias.


    "Pois é… Poderá pensar o leitor: "Parentes de presos e motos pela polícia sempre mentem. É sempre assim". Não fosse a verdade dos familiares de Leonardo Nascimento, ele estaria preso, acusado do assassinato de Matheus Lessa. A polícia trancafiou o rapaz com uma rapidez que certamente deixou o governador Wilson Witzel orgulhoso. Ocorre que era inocente. Seu pais e amigos tiveram de buscar as provas, vejam vocês!, de que ele não era o assassino. Afinal, havia o "reconhecimento". E ainda tive de ouvir: "Ah, mas ele era muito parecido com o verdadeiro criminoso"." Reinaldo Azevedo em coluna no UOL. (fonte)


 Yuri Gladstone (acima) o culpado, e Leonardo Nascimento (abaixo), inocente (fonte)


    "AH, mas bandido bom é bandido morto! Isso é uma guerra, se vão morrer alguns inocentes, só lamento!" diz um internauta imbecil.


    Eu acho que qualquer pessoa com o mínimo de bom senso e empatia consegue facilmente perceber o problema por trás dessa argumentação: no mero espaço de pouco mais que uma semana desde que comecei a escrever a parte 2 deste artigo, um carro com uma família foi alvejado por cerca de 80 tiros de fuzil disparados por nove soldados na estrada do Camboatá, em Guadalupe, quase chegando ao acesso à Avenida Brasil. Segundo a família, não havia blitz, nem nenhum aviso e o transito fluía normal. Eles estavam indo para um chá de bebê.


Carro fuzilado pelo Exército em Guadalupe, Rio — Foto: Fábio Teixeira/AP(fonte)


    "O fuzilamento de um carro em Guadalupe, Zona Norte do Rio, causando a morte do músico Evaldo Rosa, de 51 anos, e deixou dois feridos, na tarde de domingo (7), levou o Exército a prender 10 militares nesta segunda-feira (8).

    Num primeiro momento, porém, o Comando Militar do Leste afirmou que o morto era um assaltante. Depois, citando "inconsistências" nos depoimentos, determinou a prisão em flagrante de 10 dos 12 militares ouvidos, "em virtude de descumprimento de regras de engajamento". A investigação ficará a cargo do Exército.

    Para o delegado Leonardo Salgado, da Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, "tudo indica" que os militares do Exército se confundiram." 
(fonte)


    Oitenta tiros agora é "confundir numa abordagem". E o pior é que, além de todo o trauma nessa família, além da morte de Evaldo, que deixou esposa e um filho de 7anos, outra família foi vitimada: hoje, dia 18 de Abril, enquanto ainda estou terminando este post, a terceira vítima além de Evaldo e seu sogro, acabou por falecer.

    Luciano Macedo era catador de material reciclável e tentou ajudar a família no momento em que o carro parou com o motorista já morto. Ele ficou internado em coma, respirando por aparelhos e precisava receber uma decisão judicial para ser transferido para outro hospital, o que teria demorado demais para sair, agravando seu estado segundo a ONG Rio de Paz. Quando a decisão finalmente saiu, o estado dele já havia se agravado e o impediu de ser transferido.  Ele deixou  esposa grávida. Nenhuma autoridade responsável entrou em contato com ela, apenas a mesma ONG acima, que depende das doações das pessoas.





    Para quem, como o presidente da república, acha que tudo foi um "incidente" e que o exército "não matou ninguém" , outro caso semelhante já tinha acontecido no dia anterior, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, onde um jovem de 19 anos foi morto durante uma blitz do Exército. Christian Felipe Santana estava na garupa da moto com um amigo, que havia tentado fugir da blitz, o que provocou a reação, ainda assim, desproporcional dos militares.


    "Segundo o sobrevivente, que conduzia a moto e também foi baleado, um dos soldados disse que o tiro acertou o jovem porque o fuzil "estava torto" e ele queria acertar o pneu. Christian foi enterrado na tarde de sábado. Neste domingo, a família dele protestou na Vila Militar.

    "Meu filho era estudioso, meu filho se formou com 17 anos de idade, terminou o segundo grau. Ele não estava fazendo faculdade ainda porque eu estava desempregada", disse a mãe de Christian.

    Em nota, o Comando Militar chamou os jovens de "criminosos" e disse que, além de furar o bloqueio, eles lançaram os veículos sobre os militares, que reagiram." (fonte)


    Longe de serem meros "incidentes", dizer que o exército não matou ninguém, além de desrespeitoso é uma baita mentira deslavada, visto que o Brasil tem em sua história inúmeros registros de guerras civis, revoltas e conflitos que ganharam nomes estranhos como "Balaiada" e "Sabinada", mas que foram batalhas sangrentas onde o povo morria nas mãos de seu próprio "defensor", ou o exército brasileiro, segundo Bolsonaro.


Prisão de jagunços conselheiristas retratada em uma simulação demonstra que a fotografia no século XIX buscava se assemelhar com o trabalho das pinturas, 1897 (Flávio de Barros/Acervo Museu da República). (fonte)

    É preciso uma grande cegueira para não ver o que está bem na cara de todo mundo: a intervenção militar e todas essas políticas de enfrentamento à violência e ao tráfico de drogas nas favelas são na verdade uma guerra aos pobres e principalmente contra os negros. Se tivesse sido uma família branca naquele carro, haveria alguém para duvidar deles e tentar jogar a pecha de criminosos em gente inocente? Se o rapaz morto na garupa da moto fosse branco e de classe média/alta, ele teria recebido o mesmo tratamento humilhante do Comando Militar? Acho que, no fundo, todos nós sabemos a resposta dessa pergunta.



Faixa da campanha "Eu pareço suspeito?"

    "Outros estados têm índices de criminalidade piores que os do Rio (em 11º lugar na taxa de mortes violentas em 2017) e não receberam ajuda federal, como Rio Grande do Norte e Acre, por exemplo. Para o Observatório da Intervenção, grupo de pesquisadores da Universidade Cândido Mendes, decisão teve cunho político e permitiu que Temer abandonasse a reforma da Previdência, já que é proibido mudar a Constituição diante de intervenções. A medida também foi decretada às pressas e sem um plano pronto) logo depois do Carnaval, quando cenas de roubos em áreas nobres foram amplamente divulgadas pela imprensa e aumentaram a percepção de insegurança e vácuo no governo do estado. [...]

    Apesar de quedas em crimes contra o patrimônio, como roubos de rua e de carga, os homicídios e mortes por policiais em serviço cresceram nos cinco meses completos de intervenção. O gabinete justifica o aumento pelo maior número de operações policiais, o que é criticado por estudiosos da segurança. A produtividade policial também não é algo a ser comemorado: houve queda de apreensões de armas pesadas e nas prisões." (fonte)




    Num país onde se morre e se mata tanto, políticas de segurança e maior eficiência da polícia deveriam ser pensadas e aprovadas com urgência, mas essas políticas de longo prazo acabam sempre sendo preteridas por medidas imediatistas e eleitoreiras, que comprovadamente se mostram ineficazes:


    "Veja, você vai numa área onde tem 30 fuzis na mão de homens ligados ao crime. Se você vai naquela área, é claro que vai enfrentar 30 fuzis. Ou vai fazer uma operação de inteligência, ou vai prender o comandante, o chefe dessa gangue, fora dali, quando ele for visitar a namorada ou visitar a mãe no Espírito Santo? Ou vai apreender o fuzil na Dutra, quando ele estiver entrando, ou vai apreender a caixa de munição na baía de Guanabara, quando ela tiver sendo entregue? Não. Você faz uma opção por fazer uma operação com gente de fuzil entrando na favela. Aí você tem aumento de autos de resistência e diz: “Ah nos só estamos reagindo”. Não, eles estão com uma política que privilegia o confronto e as operações de enfrentamento. Quando você tem essa dinâmica de presença muito enraizada de gente carregando armas de guerra, é claro que vai haver confronto." (fonte)





    "Os estados que mais registraram mortes de civis devido a ações policiais em 2017 foram o Rio de Janeiro, com 1,1 mil; São Paulo, com 940; e Bahia, com 668." (fonte)


    Em "A história do Periquito e do Macaco", o narrador-personagem conta o embate entre "cara de macaco", um tenente cruel, e "Periquito da Rajada", um traficante de voz fina que quer vingar o irmão, durante a instalação das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora na Rocinha em 2013, mais especificamente na localidade da "Cachopa". Acredito que o conto retrata bem a repressão policial sem sentido na "guerra às drogas", que no fundo, só contribui com mais mortes:




    "Era um filho da puta de um tenente que chegou metendo bronca. O que dava mais ódio era que o bagulho dele não era nem pegar traficante, o bagulho dele era pegar viciado. [...] Primeiro viciado que ele pegou dando um teco no beco, fez o cara cheirar o pó de vinte cinco todo na frente dele, de uma vez.

    Depois começou a bater a cabeça do maluco na parede [...] nessa época, vários polícia tinha mandado o papo que, se a gente quisesse fumar maconha, era pra fumar na laje, sempre foi o setor mais tranquilo mermo. 

    Mano, o Cara de Macaco se entocou por ali até os menor descer. Quando eles desceu, ele chegou no sapato e guentou os dois, mas fez nada ali na rua não [...] Levou os menó lá pra casa do Mestre, que já era base deles na época, e arrebentou os menó. Foi papo de a noite toda esculachando eles, vagabundo fala que até uma cenoura eles botou no cu dos moleques, mó vacilação."


    No fim, Periquito arma um plano de vingança contra o tenente e, como era de se esperar após a morte do policial ocorrem várias operações em retaliação, mas sem grandes resultados em parar o tráfico. Outro ponto interessante do conto é a diferença na abordagem do tal tenente quanto ao tipo de "viciados":

    "Ele começou a esculachar o playboy ali na estrada da Gávea, na frente de geral mermo. Falando que depois toma tiro e não adianta reclamar, porque tava dando dinheiro pros cara comprar as arma. Esses polícia é mó piada mermo, falando assim até parece que não é eles que vende a porra das arma no morro...[...] o playboy não peidou não, foi se crescendo, o pai do menó era juiz, desembargador, sei lá, um bagulho desses que deixa os polícia com o cu na mão."




    Hipocrisias à parte, a narrativa de "Combate às drogas" feito principalmente através de repressão policial cai por terra quando se consideram as estatísticas:

    "Roubos e estupros sobem em São Paulo, por exemplo, enquanto policiais e viaturas estão estacionados em distritos policiais para registrar flagrantes de maconha com peso equivalente a dois bombons. Não podemos mais fechar os olhos para isso." (fonte)


    E, novamente, o motivo de alguém ser preso por carregar maconha e não ser preso por outros crimes (cof,cof, caixa 2, cof, cof) é um fenômeno que pode ser explicado por vários fatores, dentre eles:



O mistério da intolerância religiosa e a cegueira do Poder Público para com as demandas sociais




    "O rabisco", fala de um pichador que abandona a tinta após seu filho nascer, mas que não resiste à tentação de deixar sua marca no mundo e tem uma recaída provavelmente fatal.  Eu, que fui a criança que desenhava na carteira da escola tive uma certa identificação com a narrativa, não vou negar. Eu interpreto esse conto como sendo mais que um retrato da mentalidade punitiva do "bandido bom é bandido morto" que se estende sobre vários delitos menores atualmente. É também sobre a vontade do indivíduo em desafiar o Estado perante a falta deste na vida do indivíduo. Por que de certa maneira, a pichação surge como um protesto, uma forma de expressão  de pessoas que não se sentem ouvidas de outras formas pelo poder público.






    Se pra mim esse foi um dos contos mais emocionantes pela ação que extravasa nele, outros como "O caso da borboleta" e "Primeiro dia" seguem na lanterna dos demais. Vi resenhas dizendo que o primeiro é inexpressivo e que o segundo acaba com o final em aberto e sem grandes surpresas.

    Eu discordo quanto ao "Caso da borboleta"; é uma história singela sobre um menino que vê uma borboleta caída no óleo frio da panela e a socorre enquanto come um biscoito. Sem grandes auês nem nada, ele apenas age movido pela empatia natural de um menino de nove anos. E sinceramente, em tempos como este, eu gostei desse conto. Faz bem ao coração testemunhar pequenos gestos de bondade de vez em quando.

    Já "Primeiro dia", é sobre um menino em seu primeiro dia na escola pública. A melhor parte é ele refletindo sobre o nome de sua escola antiga:

    "Ainda assim, se tratando de nome, se consolava porque alguns amigos estudavam em escolas com nomes piores, cujo som era um convite para zoação instantânea, formando bordões como "Ubaldo de Oliveira, entra burro e sai caveira". Ou o clássico: "Djalma Maranhão, entra burro e sai ladrão"."


    Perdão caso algum leitor tenha  estudado em uma dessas escolas, a verdade é que a maioria de nós continua saindo burra delas, sejam públicas ou particulares. Prova disso são certos canais de youtubers que se propagam como vírus e cujo público acredita mais que em professores e pesquisadores. E com home schooling agora então, nem se fala, mas continuemos.

    Junto desses, "A viagem" me pareceu um dos mais desinteressantes; chega a ser irônico que ele tenha sido o primeiro da coletânea a ser escrito pelo autor, o que confirma a ideia de que o exercício da escrita é algo aprimorado ao longo do tempo. Nele, um grupo de amigos DO BARULHO viajam para Arraial do Cabo e arrumam ALTAS CONFUSÕES quando bandidos DA PESADA aparecem e estragam o rolê deles. Desculpem, eu estava com saudades de ouvir a voz do narrador da Sessão da tarde.




    O conto "O cego", é, junto com os dois últimos do livro, um dos mais melancólicos. É sobre Matias, um idoso cego de nascença que, por se ver sem possibilidades de trabalho, passa seus dias a pedir dinheiro nos ônibus:

    "Seu Matias tem como emprego tocar o coração de pessoas no ônibus. Para chegar até seu objetivo, joga com o passageiro um jogo de palavras e sons angustiantes, a voz que se mistura com o barulho da cidade, o som das moedas chacoalhando no copo de Guaravita, a bengala de alumínio batendo sempre pra esquerda e depois pra direita no chão do coletivo. Tudo depende de como se desenrola o dia de seus possíveis patrocinadores. Se é começo ou fim de mês, se estão expostos à sensibilidade ou armados contra o que vem de fora. No entanto, mesmo com tudo isso que se deve pôr em conta, consegue faturar uma quantia razoável em dinheiro toda semana, trabalhando sempre um dia sim e o outro não. [...] 

    Se recusava a ficar na rua balançando uma caneca como já haviam sugerido. Pensava que, se era para pedir, que fosse se comunicando com as pessoas, contando sua história.

    Passou dias ensaiando o que diria quando estivesse diante de sua plateia no ônibus.Falando da mãe, do pai desaparecido. Da dificuldade que é para um cego conseguir emprego na cidade, e por fim, pedia a Deus que abençoasse a todos, àqueles que podiam e os que não podiam contribuir."





    Assim que eu terminei a leitura deste conto, me veio à mente toda a problemática da Reforma da Previdência. Do modo como está sendo proposta, a Reforma aumenta a idade em que pessoas como Seu Matias, que não tem qualquer tipo de amparo social ou trabalhista, possa receber o equivalente a um salário mínimo. Não somente isso, mas a proposta ainda diminui o valor desse benefício:

    "Pela proposta do governo, idosos só poderão receber o BPC –que garante 1 salário mínimo a deficientes e idosos sem condições de se manter– após os 70 anos. Hoje, a idade mínima é de 65 anos. A proposta estabelece, como compensação, que idosos a partir dos 60 anos recebam o valor mensal de R$ 400." (fonte)

    Enquanto isso, políticos, juízes e militares seguem com suas pensões milionárias, além de aposentadorias que no caso dos políticos são simplesmente absurdas: não existe justificativa lógica para alguém que está num cargo eletivo se aposentar através dele. A lei diz que "de vereadores a presidentes" por serem "cargos temporários", aplica-se o regime geral de previdência social.

    "Os que ocuparam cargos eletivos não podem mais ser incluídos em regimes de servidores públicos municipais, estaduais e federais – a não ser que também tenham sido servidores. Mas, como veremos, ainda existem muitas exceções a essa regra." (fonte)
 


    O que ocorre é que, mesmo com algumas mudança na lei ao longo dos anos, muitos políticos fizeram verdadeiras "carreiras" e acabaram por se aposentar com benefícios que outros setores da população não tem:

    "Ex-congressistas brasileiros ainda podem se aposentar em condições diferenciadas por causa do exercício de mandato parlamentar. As regras atuais estão contidas em uma lei de 1997, que extinguiu o Instituto de Previdência dos Congressistas (IPC) e instituiu o Plano de Seguridade Social dos Congressistas (PSSC). O IPC exigia não mais do que oito anos de mandato de deputado ou senador e 50 anos de idade mínima. O parlamentar que alcançasse essas condições recebia 26% do subsídio – só atingiria o subsídio integral se chegasse a 30 anos como deputado ou senador. Mesmo extinto em 1999, muitos parlamentares ainda se aposentam de acordo com as regras do IPC – por terem sido deputados ou senadores antes de 1999. [...]

    A princípio, a reforma apresentada pelo governo Temer determina que políticos federais sejam incluídos definitivamente no regime geral de previdência. Entretanto, eles terão regras de transição diferenciadas, a serem definidas em outra lei. Já parlamentares estaduais e municipais dependem das mudanças nas regulamentações locais." (fonte acima)





   Desde a campanha eleitoral, Paulo Guedes, o ministro da economia e posto Ipiranga de Bolsonaro, propõe o a troca do sistema atual pelo de capitalização como solução para o rombo nas contas públicas. O problema é que esse modelo não é nenhum consenso entre especialistas e inclusive causou danos inestimáveis às aposentadorias no Chile:

   "Apontada como modelo pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a privatização da Previdência Social chilena, promovida pelo general Augusto Pinochet na década de 1980, continua vigente e cobrando um preço cada vez mais elevado. O colapso do sistema tem ganhado maior visibilidade nos últimos dias à medida que o arrocho no valor das pensões e aposentadorias se reflete no aumento do número de suicídios.

    De acordo com o Estudo Estatísticas Vitais, do Ministério de Saúde e do Instituto Nacional de Estatísticas (INE), entre 2010 e 2015, 936 adultos maiores de 70 anos tiraram sua própria vida no período. O levantamento aponta que os maiores de 80 anos apresentam as maiores taxas de suicídio – 17,7 por cada 100 mil habitantes – seguido pelos segmentos de 70 a 79 anos, com uma taxa de 15,4, contra uma taxa média nacional de 10,2. Conforme o Centro de Estudos de Velhice e Envelhecimento, são índices mórbidos, que crescem ano e ano, e refletem a “mais alta taxa de suicídios da América Latina”." (fonte)

   Além do problema de que, nesse sistema, o trabalhador contribui sozinho com a própria aposentadoria, haveria um custo alto para financiar a transição e pagar a aposentadoria de quem está no sistema hoje:

o custo dessa transição seria da grandeza de um PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro. É como se, em um ano de trabalho, toda a riqueza que o Brasil gerasse fosse apenas para financiar a mudança do sistema previdenciário", disse. Outro problema seria o baixo valor das aposentadorias. "No Brasil, há muitos trabalhadores rurais e informais que não têm uma renda regular. Pode ser que eles cheguem à idade de se aposentar e não tenham dinheiro suficiente para se manter", afirmou Kaizô Beltrão, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV-Rio.... - Veja mais em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/01/09/reforma-da-previdencia-capitalizacao-paulo-guedes-bolsonaro-aposentadoria.htm?cmpid=copiaecola
o custo dessa transição seria da grandeza de um PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro. É como se, em um ano de trabalho, toda a riqueza que o Brasil gerasse fosse apenas para financiar a mudança do sistema previdenciário", disse. Outro problema seria o baixo valor das aposentadorias. "No Brasil, há muitos trabalhadores rurais e informais que não têm uma renda regular. Pode ser que eles cheguem à idade de se aposentar e não tenham dinheiro suficiente para se manter", afirmou Kaizô Beltrão, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV-Rio.... - Veja mais em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/01/09/reforma-da-previdencia-capitalizacao-paulo-guedes-bolsonaro-aposentadoria.htm?cmpid=copiaecola
   "[...] o custo dessa transição seria da grandeza de um PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro. É como se, em um ano de trabalho, toda a riqueza que o Brasil gerasse fosse apenas para financiar a mudança do sistema previdenciário", disse. Outro problema seria o baixo valor das aposentadorias. "No Brasil, há muitos trabalhadores rurais e informais que não têm uma renda regular. Pode ser que eles cheguem à idade de se aposentar e não tenham dinheiro suficiente para se manter", afirmou Kaizô Beltrão, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV-Rio."  (fonte)




    Enquanto o Congresso entra em atritos com a questão, os privilégios dos militares de alta patente e de juízes e desembargadores seguem inquestionáveis:

    "O pagamento de pensão a filhas solteiras de militares ainda é um tabu nas Forças Armadas. Enquanto o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) divulgam detalhes como nome e remuneração dessas pensionistas, entre os três Comandos Militares, apenas a Marinha informa, parcialmente, dados sobre despesas e faixas de vencimentos. A Marinha afirma ter 11.443 filhas solteiras como pensionistas. Na Aeronáutica, há filhas solteiras com mais de 70 anos de idade.

    O gasto mensal com as pensões de filhas solteiras chega a R$ 46 milhões na Marinha – o que representa uma despesa anual de R$ 608 milhões. Apenas 0,96% delas – ou 110 beneficiárias – recebem entre R$ 20 mil e R$ 28,1 mil. Outras 1.064 recebem de R$ 10 mil a R$ 20 mil. Mais 2.132 têm renda entre R$ 5 mil e R$ 10 mil. A maior parte – 6.427 beneficiárias – recebe de R$ 1 mil a R$ 5 mil.    A média fica em R$ 4 mil por pensionista, enquanto chega a R$ 14,3 mil no Senado e em R$ 17,8 mil na Câmara. A concentração de altos rendimentos também é maior no Congresso: 15 filhas solteiras maiores recebem pensão acima de R$ 30 mil, sendo que uma delas tem renda bruta de R$ 50 mil." (fonte: A Gazeta do Povo)




    Eu poderia passar o resto do dia falando dessa questão e de como a mídia trabalha incessantemente para incutir na cabeça do cidadão comum a necessidade dessa reforma enquanto seguem devendo milhões para o fisco, mas como dizem por aí, "a mamata acabou, e a minha paciência também", então vamos trocar de assunto antes que eu me deprima ainda mais.


 

    "O mistério da vila" é um dos melhores contos: fala das reações de três crianças após Dona Iara, conhecida pelos adultos do lugar como "a macumbeira" adoecer e ser levada ao hospital. O conto mostra que, diferente do que muita gente pensa e fala por aí, crianças não nascem naturalmente boas e tolerantes quanto à diversidade do outro. Longe da visão de que crianças nascem puras e sem maldade, a grande verdade é que tolerância precisa sim ser estimulada. As crianças podem até nascer sem grandes desprezos pelos outros, mas elas absorvem muito rápido os julgamentos que a sociedade ao redor delas faz do "certo" e "errado", do "bom" e do "mau". E dentro disso está a intolerância religiosa, vista aqui contra a figura de Dona Iara, que apesar de ser julgada por católicos e protestantes como alguém a ser evitado, é quem socorre os moradores da vila, mesmo que em segredo.





    Num tempo em que se viu muito preconceito e ignorância pela internet quanto a polêmica do STF decidir pela constitucionalidade dos sacrifícios de animais em cultos religiosos, é importante perceber que as religiões mais atacadas foram as de matriz africana. Apesar delas não serem as únicas a utilizarem sacrifícios animais em cultos, religiões como o Candomblé ficaram na linha de tiro dos ativistas pelos animais e dos veganos.


    Confesso que eu mesma mantinha certa ignorância e torcia o nariz para a ideia de matar um animal de forma dolorosa em nome da religião que fosse. Na minha cabeça, animais merecem ser protegidos à todo custo, mesmo que eu ignore hipocritamente as condições que levaram o bife e a galinha até o meu prato. O que eu não sabia, e que muita gente não sabe, é que os sacrifícios em cultos de matriz africana no Brasil envolvem apenas animais que são os de consumo normal dos brasileiros (Nenhum cachorrinho ou gatinho é morto, diferente do que a ativista e apresentadora de TV Luísa Mell teria propagado erroneamente).




    "[...] dependendo do orixá (ou do guia de umbanda) são abatidos galinhas, patos, pombos, bodes, carneiros e até mesmo bois inteiros. Mas não se mata animal silvestre nem animal doméstico. [...] Os sacrifícios visam fazer circular a energia que anima tudo no mundo, o axé”, diz o pesquisador Rodrigo Pereira. “Ao se sacrificar um animal, não está se matando uma vida, mas sim fazendo essa energia que anima orixás e homens ser redistribuída.” Ou seja, o sangue, fonte de axé, é doado aos deuses. " (fonte)



    Rituais de "magia negra" não tem nada a ver com o que é feito nesses cultos. Na verdade, esse é um nome pejorativo que agrupa um monte de coisas que se relacionam mais com "satanismo" e coisas advindas de cultos anti cristãos:

    "Não fazemos pacto com o demônio, até porque não acreditamos na existência dele, ou seja, é impossível fazer um pacto com o que não acreditamos", revela Santos. É importante ressaltar que não há um correspondente ao diabo nas religiões de matriz afro, pois acredita-se que que cada pessoa é de uma vez só o bem e o mal." (fonte)


Terreiro de Omoloco, religião que mistura Candomblé e Umbanda

    Infelizmente, os casos de depredação e ataques aos terreiros e aos pais e mães de santo tem crescido no interior do Rio. A maioria desses ataques foram feitos por traficantes, que de alguma forma, se julgam superiores aos membros das religiões afro e o fazem a pretexto de defender seu "Deus maior". Por mais louco que possa parecer, a verdade é que a fonte dessas agressões se deve à influência de líderes de religiões evangélicas e pentecostais que "convertem" líderes de facções e homens do tráfico:

    "A conversão religiosa dos “homens do tráfico” não é um fenômeno novo, e esse tipo de perseguição acontece há mais de 10 anos nas favelas cariocas.[...] Muitos deles são de famílias evangélicas, então já foram educados com referencial religioso. [...]

    Há muitos nessa comunidade moral que é a comunidade religiosa, que negam o pertencimento do traficante, pois ele não pode dizer que é evangélico porque ele não tem uma conduta correta. Dizem que eles estão em um processo. Tem muita gente séria que leva a palavra de Deus a essas pessoas, pois acreditam que elas podem e devem se libertar. Mas também tem os que usam o dinheiro do tráfico. A coisa é complexa e tem de tudo." (fonte)


    Além disso, diferente do que muita gente pode pensar, não são todas as religiões de matriz africana que fazem uso do sacrifício de animais, existem exceções, como na umbanda:

   "A premissa básica da umbanda é a preservação de todas as formas de vida. Jamais, em circunstância alguma, de acordo com seu fundador, faria uso de sacrifício animal. Essa é uma grande diferença entre umbanda e candomblé”, afirma Rodrigo Queiroz, sacerdote de umbanda e fundador da primeira plataforma de ensino à distância para seguidores da religião." (fonte)



    Nas religiões que utilizam sacrifício, são tomados cuidados para que os animais tenham o menor sofrimento possível pelos métodos utilizados e o animal geralmente acaba consumido pelos próprios frequentadores do culto, através de cerimônias.  Existe muita hipocrisia em condenar esses cultos que nem de longe matam tanto quanto a pecuária e a indústria da moda e cosméticos





    Fazendo um gancho com outro tema que aparece muito na coletânea, não é de se estranhar o fato de que muito da intolerância que as religiões afro (e a maioria das religiões não-cristãs) sofrem tem a ver com a brutalidade policial com usuários de drogas ilícitas, como a maconha.





    Sim, caro internauta. Se você não sabe ainda, há um laço histórico entre a proibição dessa droga específica com o preconceito racial e um combate mais específico ainda aos negros aqui no Brasil e a outras minorias no caso dos Estados Unidos. E o que isso tem a ver com religiões afro? Acontece que algumas religiões faziam uso dela (ou ainda fazem, como é o caso do Movimento Rastafári ) desde a antiguidade, com registros no terceiro milênio a.C., tendo uso religioso, recreativo e medicinal documentado ao longo da história.


Cânhamo descrito no Dioscórides de Viena, manuscrito científico de 515 d.C. (fonte)



   A planta, originária da Ásia Central e Meridional foi transportada e comercializada para praticamente todo o globo, vindo para o Brasil literalmente nas caravelas de Pedro Álvares Cabral:


    "A fibra da cânabis, chamada de cânhamo, serviu de matéria-prima para velas de navios, como as caravelas de Pedro Álvares Cabral. O cânhamo também foi usado como fonte de produção do papel. Ironicamente, a Constituição dos Estados Unidos, país que defende a proibição de qualquer tipo de uso da maconha, foi escrita em papel de cânhamo. No Brasil, a planta chegou pelas mãos dos escravos que trouxeram as sementes da África." (fonte: Revista Galileu)

    E antes que alguém venha me acusar de fazer apologia às drogas, vá à merda. Não existe um consenso nem entre especialistas sobre o uso da maconha, e em nenhum momento eu estou dizendo que seu uso seja bom ou ruim. O que eu acho importante é que exista espaço para debater o assunto, porque da mesma forma que acontece com a posse e o porte de armas, a cultura do proibicionismo não funciona e não é benéfica pra ninguém. Mas voltando ao assunto, o ponto aqui é que historicamente muito da forma como o Estado lida com essa droga específica vem desse preconceito que os colonos alimentavam sobre a "erva dos escravos":



    "A maconha foi apresentada à sociedade brasileira como a "erva do diabo", muito associada aos negros. Todo preconceito social foi jogado na maconha. Eu lembro que, quando eu era adolescente, diziam que cocaína era droga de rico, e maconha, de engraxate. Cocaína era da elite, era cara. Maconha era uma droga mais barata, mais acessível à população mais pobre. 

    E olha o que aconteceu com a cocaína hoje, não custa mais nada, é acessível a qualquer um. E depois o crack, que tem muito risco de provocar compulsão." Drauzio Varela para O Globo, em 03/05/2019 (fonte)




    Mesmo com toda a carga do preconceito, a maconha foi tolerada por um certo período, principalmente porque até o século XX, a indústria fazia muito o uso dela:

"Dezenas de remédios – de xaropes para tosse a pílulas para dormir – continham cannabis. Quase toda a produção de papel usava como matéria-prima a fibra do cânhamo, retirada do caule do pé de maconha. A indústria de tecidos também dependia da cannabis – o tecido de cânhamo era muito difundido, especialmente para fazer cordas, velas de barco, redes de pesca e outros produtos que exigissem um material muito resistente. A Ford estava desenvolvendo combustíveis e plásticos feitos a partir do óleo da semente de maconha. As plantações de cânhamo tomavam áreas imensas na Europa e nos Estados Unidos." (fonte: Superinteressante)



Plantação de cânhamo no estado do Arizona, nos EUA, no início do século XX.


    Vários fatores levaram à proibição da droga, desde a caretice e o preconceito social e racial que ligava a maconha a diversos problemas sociais (que poderiam ser bem mais ligados ao álcool, diga-se de passagem), até fatores econômicos, como a descoberta de fibras sintéticas, como o nylon, e a pressão de industriários para inserção delas no mercado. Aqui no Brasil, porém a proibição ganhou contornos de repressão social do governos às minorias, sobretudo, os negros:

  
"Já nos anos 1940, embora Filinto Muller, influente chefe da polícia política de Getúlio Vargas, declarasse que a Umbanda não fazia mal a ninguém, invadia e quebrava todos os terreiros que insistiam no uso da maconha. Como havia o desejo da Umbanda, que estava se estruturando, ser reconhecida como religião, subtraiu-se o uso da maconha de suas práticas para obter esse reconhecimento. Identifica-se aí um traço de embranquecimento, ainda que forçado, da Umbanda.

    Ao mesmo tempo em que eram descriminalizadas as religiões de origem africana, a capoeira e o samba, a maconha foi criminalizada pelo artigo 281 do Código Penal de 1940." (fonte)


Frente Negra Brasileira, organização que mantinha escolas para negros e reivindicava direitos, fechado em 1937 por Vargas.

   O tempo passou e a repressão só piorou após o Golpe Militar:

   "Em 4 de novembro de 1964, primeiro ano do regime militar, o artigo 281 passou a criminalizar também a posse: “Plantar, importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a consumo, substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar." (fonte)




   Pessoalmente, eu não vejo drogas com bons olhos. Enfim, isso é uma visão minha, cada um tem a sua. Entretanto, eu considero importante que as pessoas em geral, e principalmente crianças e adolescentes tenham informações corretas sobre o que são as drogas e como elas funcionam. O número de adolescentes que usam drogas provavelmente diminuiria muito caso eles tivessem esse tipo de conhecimento ao invés de simplesmente ter alguém lhes fazendo terrorismo sobre o assunto.

   Partindo do princípio de que pessoas adultas tem consciência de suas escolhas e deveriam ser livres para fazê-las, por que então algumas drogas são legais, como o álcool e o cigarro, e outras não? E, numa sociedade em que o uso de drogas inclusive, psicofarmacos, é cada vez mais difundido, a quem, especificamente, interessa que certas drogas permaneçam ilegais?

A (lucrativa) guerra às drogas, política de encarceramento e internações compulsórias






   Eu juro que eu queria só falar rapidinho desses três últimos contos e dar por encerrado o artigo, por que, né, eu não ganho nada pra isso. Mas o meu senso moral fala muito mais alto, então eu preciso falar da última canalhice do governo federal esses dias, que foi censurar a pesquisa da Fiocruz.



   Com a desculpa louca de que "a instituição tem o viés de defender liberação das drogas", o Ministro da Cidadania, Osmar Terra, discordou dos resultados da pesquisa e colocou em cheque a credibilidade e a metodologia da pesquisa sem apresentar nenhuma justificativa plausível para isso a não ser o bom e velho "viés comunista" e blábláblá. E numa manobra quase satânica, a instituição teme que, caso divulgue os resultados que o governo não quer ver, isso signifique uma quebra de contrato e a instituição seja obrigada a devolver os 7 milhões gastos no estudo.

   "Para o levantamento, a Fiocruz usou a mesma metodologia da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar, a Pnad, do IBGE, para ouvir 16.273 pessoas em 351 cidades. A amostra é o dobro do penúltimo levantamento nacional, realizado pelo Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas em 2005. O novo levantamento mostrou, pela primeira vez, os padrões de consumo dos municípios rurais e da faixa de fronteira do país. E investigou o uso de drogas lícitas – tabaco e cigarro – e ilícitas em dez tipos ou categorias: maconha, haxixe ou skank, cocaína em pó, crack e similares, solventes, ecstasy/MDMA, ayahuasca, LSD, ketamina e heroína, além de estimulantes e anabolizantes.[...]

   O governo afirma que não é possível comparar a pesquisa com a anterior, de 2005, que abrangeu as 108 maiores cidades do país. A atual pesquisa se estendeu a 351 municípios, mas manteve o recorte das 108 em várias tabelas comparativas ao longo do relatório. Neste estrato, é possível identificar, por exemplo, queda no consumo recente de tabaco — de 18,4%, em 2005, para 14,2%, em 2015 — e de álcool — de 38,3% para 33%."(fonte)


   O conto "Estação Padre Miguel" fala de um grupo de amigos fumando baseados na estação da Zona Oeste do Rio, na época em que traficantes haviam "proibido" o crack no lugar:

   "Na época estava proibido fumar crack na Vintém. As coisas tinham fugido do controle: muito roubo, briga, perturbação. Crack é foda. O que traz de dinheiro, traz de problema pra quem trabalha na boca. Pro morador é ainda pior, porque aí é só perrengue, vergonha, preocupação. A saída que encontraram foi criar essa lei proibindo o consumo dentro da comunidade. Pra falar a verdade, não lembro com certeza se valia pra toda a favela, ou apenas pra linha do trem, onde a parada era mais frenética. [...]

   Na linha, tenho certeza, estava proibindo. Tanto que quando chegamos não tinha uma alma viva por lá. Da cracolândia só restava o lixo e o cheiro: copos de Guaravita, pedaços de roupas, filtros de cigarro, merda humana, isqueiros sem gás. Sentamos em cima dos trilhos, onde era sempre mais limpo do que as encostas do muro que cerca toda a linha do trem até chegar na estação. A noite tinha acabado de cair, e quando o consumo era liberado era esse o horário de pico. Juntava gente que saía do trabalho, da escola, os que desciam do trem e os que acampavam pela favela. A noite protegia os que tinham medo de explanar o vício. Quando escurecia, na linha do trem ninguém tinha mais nome nem rosto pra quem passasse de fora, era tudo um único monte viciado."


Cracolândia no Rio de Janeiro.

   O consumo de crack se tornou um grande problema das metrópoles brasileiras, não há como negar isto. Porém, há de se desconfiar do discurso higienista que o ministro e tantos outros políticos que se depararam com esse problema pregam: a ideia de "retirar" as pessoas da cracolândia e interná-las compulsoriamente em clínicas de recuperação de dependentes químicos soa como o último e único recurso contra um vício tão avassalador como o que essa droga provoca.

   "O efeito do crack é o efeito da cocaína basicamente. A droga é a mesma, mas tem outro mecanismo de ação. A cocaína você cheira, ela gruda na mucosa do nariz e vai sendo absorvida, atinge um pico e depois o efeito vai diminuindo. No crack, como a droga vai direto para o pulmão, ela é absorvida imediatamente. Do pulmão vai para o coração e do coração já vai para o cérebro, chega muito depressa, de seis a dez segundos. É esse efeito rápido que provoca dependência, que provoca o uso compulsivo" Drauzio Varella, para a Globo News (fonte abaixo)
 
   Para a psicóloga Elizabeth Pereira, a internação involuntária funciona tão bem quanto a voluntária: "Muitas vezes é necessário internação à revelia. Claro que isso não é ideal, mas o National Institute on Drug Abuse, que regula de alguma forma o tratamento das dependências no mundo, diz que a internação involuntária funciona tão bem como a voluntária", afirma. 

   O psiquiatra Alexandre Balbi discorda: "Uma coisa é o que chamamos de internação compulsória, tirar as pessoas e internar à revelia, de maneira indiscriminada. Outra coisa é o que se chama de internação à revelia. É feita através de avaliação psicológica, médica, quando a pessoa está se colocando em situação de risco e colocando a família em situação de risco" (fonte)
 



   O problema é que, em muitos casos, apenas a abstinência não funciona para garantir um tratamento eficaz simplesmente porque ela não trabalha com as outras esferas da vida do indivíduo:  não se trabalha a vontade dele de buscar o tratamento, nem os hábitos e problemas que o levaram a utilizar a droga. E muitas vezes, mais que apenas a dependência química, a dependência psicológica e os problemas sociais acabam sendo determinantes para a recaída do indivíduo. Fora que, a política de redução de danos inclui a abstinência, portanto, as duas não são excludentes:

   "A redução de danos é um conjunto de estratégias que tem como principal objetivo garantir a saúde do indivíduo que usa drogas , independentemente de ele conseguir ou querer parar de usar a substância. Mesmo em vigência de uso, o sujeito pode estar em tratamento. A abstinência é um dos objetivos da redução de danos , está incluída nela. É um erro dizer que uma se opõe à outra. Por isso a redução de danos é uma política de saúde pública mais eficaz, pois aumenta a acessibilidade ao tratamento. O foco único em abstinência reduz o acesso ao tratamento." (fonte).




   Em vez de ser atendido e se ver amparado pelo serviço público de saúde e pelas unidades de CAPS AD ( Centro de Assistência Psicosocial Álcool e Drogas) o que o indivíduo terá será o medo de ser internado à força e ficar sujeito à condições degradantes que muitas dessas "clínicas" possuem sem serem de forma alguma fiscalizadas pelo Estado que as contrata:

   "[...] muitas das clínicas de recuperação que recebem estes pacientes não tratam os mesmos com a humanidade preconizada pela lei, embora recebam mensalidades vultosas para o tratamento proposto.[...]

   Basta analisarmos a forma com que o paciente é internado nos procedimentos involuntários, quase sempre sedado e conduzido amarrado e à força para estas instituições, muitas das vezes possuindo capacidade plena de entendimento e de manifestação de vontade, ignorados porque o ato sustenta também as chamadas “empresas de remoção”, que, também, recebem o seu preço. [...]

   Insta ainda analisar a questão das chamadas “contenções”, nas quais o paciente removido é colocado para que passe os primeiros dias de internação em verdadeiras celas, pequenos cubículos desprovidos de boa luminosidade e ventilação, sem camas ou acolchoados próprios para que dignamente sejam acomodados. As portas destas celas, sempre trancadas, possuem comumente uma pequena abertura pela qual são servidas as refeições.

   A maioria da clínicas de recuperação apenas permitem visitas uma vez por mês, isolando totalmente o paciente em detrimento da previsão legal.[...] A presença médica a qualquer tempo também inexiste na maioria das instituições, havendo a presença do profissional normalmente uma vez por semana. Isso infringe o dispositivo legal em comento já que, sem a presença do médico no momento da internação, o paciente corre o risco de ficar dias sem ser avaliado para saber se é ou não o caso de internação forçada."(fonte)


  
   Novamente, o problema em si não são as clínicas: existem com certeza, instituições que são responsáveis e cumprem a lei, observando todas as condições de bem-estar para o tratamento. Mas é ingenuidade acreditar que a fiscalização dessas clínicas esteja sendo feita a contento, principalmente quando se retira o apoio oferecido pelas unidades de saúde pública como os CAPS e os ambulatórios, deixando apenas as internações compulsórias como opção de tratamento e ainda permitindo que sejam feitas pela mão do Estado ao invés de apenas a pedido das famílias, como é atualmente. Com a criação de um "mercado" tão grande nesse setor, como o poder público se certificaria do cumprimento das normas? O que não faltam são notícias sobre abusos nesses lugares: 

   "Uma clínica clandestina para tratamento de dependentes químicos foi descoberta pelas polícias Civil e Militar, ontem (21), em Benevides, na Região Metropolitana de Belém. O espaço funcionava numa residência no centro da cidade e abrigava 6 pacientes que estavam vivendo em condições desumanas: As vítimas recebiam choque, eram acorrentadas, torturadas e obrigadas a fazer as necessidades fisiológicas na própria roupa. Cabia aos demais - que não estavam presos nas correntes - limpar os colegas. 


   Além disso, medicamentos eram dados aos dependentes em dosagens acima do que seria prescrito. Entre esses medicamentos, a polícia encontrou veneno para carrapato. “Eles (os pacientes, dependentes químicos) estavam na condição de custodiados. A violência contra eles era latente”, destacou a delegada Claudilene Maia, diretora da Delegacia de Benevides.


   Os acusados relatam que as famílias das vítimas consentiram o tratamento, mas não sabiam o que acontecia dentro da clínica.
   A delegada contou que estava numa operação conjunta na qual uma barreira havia sido montada quase em frente a clínica. No imóvel não havia nada que indicasse que ali seria um centro de tratamento para dependentes químicos.

“Um paciente, que é advogado, viu as guarnições, escreveu ‘socorro polícia’ numa folha de papel e jogou para o Major PM Rogério que foi verificar o que estava acontecendo e me chamou”, relatou Claudilene." (fonte



    Outro ponto questionável da fala do ministro é a existência ou não de uma "epidemia de drogas". Nem os especialistas estão em consenso quanto isto, mas é preocupante que se tente barrar a divulgação de uma pesquisa apenas por ela não mostrar os dados que o governo quer ouvir:

    "Mais do que o crack, o problema que salta aos olhos é o uso de álcool. Segundo a pesquisa, 66,4% já fizeram uso de álcool na vida, 43,1% no último ano e 30,1% nos últimos 30 dias – número que vem caindo. Há outros dados preocupantes, como a facilidade para encontrar bebidas alcoólicas e a baixa percepção dos seus riscos. Ao relacionar os tipos de violência consequentes do abuso do álcool, o estudo lista ocorrências variadas, como tentativa de estrangulamento e ameaça com arma de fogo."    

   “Não vejo nada surpreendente. Exceto no caso do álcool e do solvente, que tiveram queda, os outros são números esperados e revelam que o consumo, em geral, se manteve estável”, diz Maurício Fiore, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, outro pesquisador que analisou a pesquisa a pedido da reportagem. Maronna também não vê revelações “assustadoras”. Segundo ele, “quase 10% ter usado droga ilícita uma vez na vida é um número razoável. Comparado a outros países, não revelam uma situação excepcional ou alarmante”, diz.
 
    "Os pesquisadores argumentam que, embora os achados da pesquisa possam ser questionados – e é comum que a comunidade científica faça isso – nada justifica o engavetamento. A Senad poderia ter tornado as informações públicas, mas com ressalvas. “Fica a impressão de que há algum interesse por trás. Se houve erro, a melhor maneira de identificar é debater. É assim que se faz ciência: publica-se e submete-se ao escrutínio dos especialistas”, diz Tófoli." (fonte)




   Me parece, e também aos olhos muitos, que o que o governo federal e iniciativas como a de Dória em São Paulo querem mesmo é empurrar uma política de internações compulsórias encabeçadas por figurões das igrejas evangélicas, que veem nas clínicas para dependentes um lucrativo "negócio", além de portão de entrada para novos fiéis:

   "O Brasil possui quase 2 mil comunidades terapêuticas, em sua maioria ligadas a igrejas evangélicas e católicas, segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. Nelas, em geral, o tratamento se baseia em isolamento, trabalho braçal e atividades religiosas. Muitas já foram denunciadas por maus tratos, cárcere privado e outros crimes – caso da Centradeq-Credeq, em Minas Gerais, que o Intercept visitou no final do ano passado. “Essas instituições são a trincheira de resistência à reforma psiquiátrica, violando direitos e ignorando a redução de danos, que, em combinação com a abstinência, apresenta bons resultados”, diz Maronna." (fonte acima).

    Longe de avançarmos em políticas públicas na saúde que estejam em consonância com os avanços do resto do mundo, como a luta antimanicomial, o que vemos é a marcha a passos largos de volta para o tempo em que pessoas eram encarceradas sem cuidados básicos em nome de um "higienismo social do espaço público". A hipocrisia é que, esse tipo de coisa muito mais propensa a acontecer dependendo do nível econômico e da cor da pele do dependente químico. E novamente, nada feito para combater os motivos que estão na origem do problema.

   "[...] o mundo tá drogado, irmão. Até parece que tu não sabe. Já te falei e vou falar de novo: uma semana sem drogas e o Rio de Janeiro para. Não tem médico, não tem motorista de ônibus, não tem advogado, não tem polícia, não tem gari, não tem nada. Vai ficar todo mundo surtando de abstinência.Cocaína, Rivotril, LSD, balinha, crack, maconha, Novalgina, não importa mano. A droga é o combustível da cidade."
  


   No conto "Sextou", o filho de um porteiro no Leblon trabalha como boleiro em quadras de tênis na Barra da Tijuca, levantando cinco e meia da manhã e trabalhando em subempregos, esperando ansiosamente pelo fim de semana para pegar o trem e comprar baseado para si e para os amigos. Porém, no meio do caminho, tinha P.M.s corrupta a fim de levar um pro leite das crianças:

   "Nessas horas é sempre melhor dizer que mora na pista, ainda mais se rodar numa favela de outra facção. Se deixar os canas descobrirem, pode se preparar pra cair num terror fodido.
-Tem mais o que, aí nessa mochila?
Tinha só um casaco, um livro e, dentro dele, cem reais, o resto do meu pagamento. Os olhos do verme brilharam quando viu a grana, no entanto fingiu seriedade, entregando na minha mão e mandando segurar o meu dinheiro.
-Vou te falar, moleque. Tu parece ser um cara inteligente. Fala pra mim, qual é do desenrolo?"

   A fim de poupar a grana pra pagar as contas em casa, o protagonista do conto recusa ceder e pagar propina, dizendo que podem levá-lo para a delegacia, quando é surpreendido pela ameaça do policial:

"- Tu tem certeza que quer ir pra delegacia com dez trouxas de maconha?
-Só te entreguei cinco.
-Quantas tem aí capitão?
-Dez!
Nessa hora, percebi que nenhum deles usava a identificação na farda, fiquei bolado deles forjarem um flagrante pra mim e me fazerem assinar o 12. Além do mais, ninguém podia me garantir que saindo dali eu ia parar numa delegacia. Podiam muito bem sumir comigo e ficar com a grana."  

   Pra quem não sabe, "assinar o 12" é ser fichado por tráfico de drogas. A lei que versa sobre o assunto é o Artigo 12, da Lei nº 6.368/76:
 
   "Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa."


   O artigo não define nem estipula uma quantidade mínima ou máxima na distinção entre usuários e traficantes, ficando essa diferenciação a critério do "bom-senso" dos agentes e da justiça, muitas vezes tendenciosos: um fulano com 100 g de maconha pode ser enquadrado como traficante por "ser pobre" e "ter cara de traficante", enquanto um artista de tv com a mesma quantidade ou até mais será facilmente enquadrado como usuário "por não ter cara de quem precisa vender droga". A questão nem é que alguém rico e famoso hipoteticamente não se arriscaria vendendo drogas, mas sim que isso acontece pra cacete na real:



   "Um em cada 10 traficantes de São Paulo é de classe alta, aponta um levantamento inédito obtido pela GQ." (revista masculina mensal sobre moda, estilo e cultura) (fonte)

   "Em que pese o caráter aparentemente liberalizante (posto que extinguiu a pena de prisão para usuários), a Lei ainda considera o uso como crime e mantem todos os procedimentos legais para seu tratamento. Amiúde, usuários de drogas quando flagrados devem ser conduzidos à delegacia mais próxima, assinar termo circunstanciado e comprometer-se a comparecer em audiências judiciais.  Carolina Grillo, Frederico Policarpo e Marcos Veríssimo (2011) observaram em pesquisa realizada na cidade do Rio de Janeiro, que estava ocorrendo uma queda nos registros de ocorrência por flagrante de usos de droga e um aumento nos casos registrados como tráfico. Os estudiosos entendem que o abrandamento para a pena de usuário teria sido seguido da negligência do judiciário em tratar a questão, pelo fato de considerar agora fora da competência da justiça criminal. Todavia, eles mostram como a redução dos processos legais parece ter aumentado o poder de policiais em negociar os flagrantes de consumo de drogas (por exemplo, pedindo suborno para usuários com maior poder aquisitivo e agindo com mais violência frente aos usuários mais pobres). (GRILLO, Carolina C.; POLICARPO, Frederico; VERISSIMO, Marcos. “A “dura” e o “desenrolo”: efeitos práticos da Nova. Lei de Drogas no Rio de Janeiro. Revista de Sociologia e Política. 2011. V. 19, nº. 40, pp. 135-14)." (fonte)


O recorrente caso dos "jovens de classe média/alta" com 300 quilos de maconha X o "traficante" com 10 quilos.

   No fim da história, o rapaz se livra da polícia entregando o dinheiro que ele usaria para ajudar nas contas em casa e ficando com a maconha que a P.M. aceitou deixar com ele. Além de retratar a hipocrisia existente nesse "combate às drogas", o conto também mostra a situação "comum" da pessoa que compra uma pequena quantidade de entorpecente para uso próprio, mas acaba repartindo com os amigos ou mesmo fazendo um "avião" entre o comprador e o traficante. Logicamente essa pessoa incorre em crime perante a lei, mas o grosso dos lucros nunca fica com essa galera e sim com os donos da boca dentre outros chefões do crime organizado. 

   Claro que alguém poderia dizer "Quem compra está ajudando o tráfico", e eu concordo com esse ponto, só que aí, a pessoa esquece que provavelmente não haveria tanto mercado para o tráfico se não houvesse a proibição em primeiro lugar. Existe contrabando e falsificação de cigarros e bebidas alcoolicas, mas as pessoas que produzem essas coisas é que são presas, não o "consumidor final".


   Então, não acho que seja uma questão de taxar o ato de usar ou transportar/ vender drogas ilícitas como algo moral ou imoral, mas se perguntar: isso tudo dá mesmo resultado em diminuir mortes, crimes e prejuízos à saúde? O combate como é feito atualmente atinge os principais beneficiados com o crime ou na verdade só serve para prender meia dúzia de pobres coitados que acabarão esmagados pelo sistema carcerário?


"Viu só! Já começou a defender bandido, sua esquerdista imunda! Quem é amigo de traficantes, tem mais é que se fuder mesmo, kkk!!!"
...

    Falando em amizades com a bandidagem, vamos falar de milícias.



O Estado e sua (inexistente) guerra à máfia tupiniquim, vulgo milícias





   O último conto do livro é "Travessia", e narra o perrengue de Beto, um "soldado do tráfico" que acaba de matar um comprador de pó ao vê-lo usar o cumprimento de uma facção rival. Ele mata o homem por impulso, ou como os defensores do pacote "Anticrime" dizem, "motivado por forte emoção". Como passarinho que come pedra sabe o cu que tem, o dono da boca manda ele "desovar" o cadáver longe dali. Eis que o personagem contempla a merda em que se meteu:


   "Conseguiu comprar um Chevette pra pagar depois. O cara da oficina garantiu que o carro dava conta de atravessar até o lixão. Beto ia ficando cada vez mais desesperado. Sabia que esse tipo de carro é clássico de ser parado pelos vermes. Todo errado, sem documento, lanternagem fodida, eles já vêm na fome de arrumar o do café. Quando vissem o presunto, pronto já iam querer arrumar também o da compra do mês, o dos presentes de Natal, como se ele tivesse nadando em dinheiro pra perder pra polícia.[...]
   De repente, aconteceu o pior: morreu o carro. Beto olhou em volta e logo percebeu onde tava, era área de milícia. "Agora fodeu tudo de vez", pensou.Tava ligado que sem dinheiro o desenrolo com esses caras é bala. Pior raça que tem pra tu se meter nesse mundo é milícia, porque, além de ser ruim que nem o cão, ainda tem proteção da polícia."





   De fato, Beto não poderia estar mais correto à respeito: a tragédia na Muzema completa dois meses  nesta quarta-feira (12), dia dos Namorados, e o RJ1 flagrou operários erguendo construções nas comunidades do Anil e da Tijuquinha. (fonte) Vinte e quatro pessoas morreram no desabamento dos prédios construídos e vendidos pela milícia. Até agora, um corretor está preso e dois homens seguem foragidos.

   "Um morador afirmou ao RJ1 que as atividades ilegais não tardaram a voltar depois do desastre: "Só parou a primeira semana, depois voltou tudo ao normal. Estão sendo erguidos prédios novos, na fundação ainda", contou." (a mesma fonte acima).


Flagrante de construção irregular no Anil.

   "Prédios invadindo calçada, edifício de 10 andares onde só pode de 3, rio tampado, um monte de coisa irregular lá",  afirma morador.

"grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime".... - Veja mais em https://www.bol.uol.com.br/listas/o-que-e-milicia.htm?cmpid=copiaecola
"grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime"... - Veja mais em https://www.bol.uol.com.br/listas/o-que-e-milicia.htm?cmpid=copiaecola
Desde 2007, o dicionário Houaiss trata milícia como um fenômeno que ocorre no Rio de Janeiro, definindo esse tipo de organização como um "grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime". ... - Veja mais em https://www.bol.uol.com.br/listas/o-que-e-milicia.htm?cmpid=copiaecola
"grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime"... - Veja mais em https://www.bol.uol.com.br/listas/o-que-e-milicia.htm?cmpid=copiaecola

   "A palavra 'militia' tem raízes latinas que significam 'soldado' (miles) e 'estado, condição ou atividade' (itia) e que, juntas, sugerem o serviço militar. Mas milícia é comumente usada para designar uma força militar composta de cidadãos ou civis que pegam em armas para garantir sua defesa, o cumprimento da lei e o serviço paramilitar em situações de emergência, sem que os integrantes recebam salário ou cumpram função especificada em normas institucionais", explica a antropóloga Alba Maria Zaluar."


Major Ronald, homenageado em 2004 por Flávio Bolsonaro e agora preso em 2019, por grilagem de terras e chefiar milícia envolvida na tragédia da Muzema.

"grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime"... - Veja mais em https://www.bol.uol.com.br/listas/o-que-e-milicia.htm?cmpid=copiaecola
"grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime"... - Veja mais em https://www.bol.uol.com.br/listas/o-que-e-milicia.htm?cmpid=copiaecola
"grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime"... - Veja mais em https://www.bol.uol.com.br/listas/o-que-e-milicia.htm?cmpid=copiaecola


   "A função das milícias é ter ganhos políticos, econômicos, sociais e culturais. São esses ganhos que distinguem a milícia de grupos de extermínio. Podemos dizer que as milícias são a reestruturação desses grupos de extermínio", explica o sociólogo José Cláudio Souza Alves. 

   O pesquisador acredita que as milícias só existem por haver uma intenção do Estado de manter esses grupos. "Muitos falam em poder paralelo, mas isso é uma grande farsa, o próprio Estado é o poder. As ilicitudes são organizações 'permitidas' pelo Estado para manter as classes dominantes. O Estado estar ausente é uma mentira; na verdade, ele opta por estar por fora, sendo conivente com o que se passa." 


   O bairro da Muzema, onde ocorreu o desabamento, é área de atuação da milícia comandada pelo ex-PM Adriano da Nóbrega. Foragido há quase três meses, ele foi companheiro de Queiroz no 18º Batalhão da PM e tinha a mãe e a mulher nomeadas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro quando este exercia mandato na Alerj. 

   Também foi homenageado por Flávio com a Medalha Tiradentes quando estava na prisão e foi defendido por Jair Bolsonaro em discurso na câmara quando foi condenado por homicídio.


   "O PM já havia sido homenageado por Bolsonaro em outubro de 2003, quando o então deputado estadual apresentou moção de louvor ao PM, pela “dedicação, brilhantismo e galhardia” do profissional. Três meses depois, em janeiro de 2004, Nóbrega foi preso preventivamente acusado pelo homicídio do guardador de carros Leandro dos Santos Silva, de 24 anos. Além de Nóbrega, outros dez policiais foram detidos. A vítima morava em Parada de Lucas (zona norte) e havia denunciado os policiais por extorsão e ameaça. Os policiais foram acusados ainda de alterar a cena do crime, para tentar forjar um auto de resistência, que se caracteriza quando a vítima reage a uma abordagem policial e há confronto. Segundo testemunhas, o guardador não reagiu."(fonte: Estadão)

Adriano da Nóbrega, atualmente foragido e apontado como chefe da milicia na Muzema


   "Ao justificar sua iniciativa, o deputado escreveu que “em 26 de junho de 2001 (Nóbrega) logrou êxito em prender 12 marginais no Morro da Coroa, além de apreender quatro fuzis, uma submetralhadora (...) e 90 trouxinhas de maconha”. Em agosto a proposta foi aprovada pelo plenário da Alerj.  

   Dois meses depois, em outubro, Nóbrega foi condenado a 19 anos de prisão pelo Tribunal do Júri. Houve recurso à segunda instância e, em 2006, desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio anularam a condenação e determinaram um novo julgamento. O policial deixou a prisão em outubro de 2006. Em janeiro de 2007, em novo julgamento, Nóbrega foi absolvido.
O policial foi preso mais duas vezes até ser exonerado da PM, em janeiro de 2014, acusado de atuar como segurança de um contraventor." (fonte mesma acima)





   "Há uma diversidade de situações na relação entre milicianos e moradores das comunidades, sendo que as mais desenvolvidas no processo de vender segurança são as de milicianos que, além de imporem o seu serviço aos moradores amedrontados, acrescentam outras exigências, tais como a compra de mercadorias mais caras, a compra de sinal ilegal de TV a cabo, o pagamento de taxas por cooperativas de transporte alternativo que circulam em seu território, o pagamento de altos percentuais para a compra, venda e aluguel de imóveis". (fonte)

   "Apenas a Liga da Justiça, a milícia mais antiga e mais atuante, fatura quase R$ 400 milhões de reais por ano. Só as vans que fazem o transporte clandestino de Santa Cruz e Campo Grande deixam R$ 27 milhões mensalmente nos cofres da facção." (fonte

Milicianos presos em Abril de 2018


   "Queiroz é citado no relatório do Coaf após ter sido identificada uma movimentação atípica no valor de 1,2 milhão de reais em sua conta entre 2016 e 2017, valor incompatível com seus vencimentos de assessor parlamentar segundo o órgão. De acordo com ele, o valor seria fruto de operações de compra e venda de carros usados. Depois que o caso veio à tona, o ex-motorista de Flávio desapareceu. Segundo o colunista do Globo, Lauro Jardim, ele ficou abrigado por duas semanas em uma casa na comunidade Rio das Pedras, onde a milícia alvo da Operação Intocáveis agia." (fonte)



   "Promotores apontam indícios de que uma organização criminosa foi montada no gabinete de Flávio, o 01 do presidente, para desviar dinheiro dos salários dos funcionários, a chamada “rachadinha”. O dinheiro teria sido lavado por meio da compra e da venda de pelo menos 19 imóveis no Rio.

   “Desde dezembro, quando o caso foi revelado pelo Estado, a promotoria tenta ouvir Queiroz e hoje senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), sem sucesso. O ex-assessor foi visto pela última vez quando se internou no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para tratar um câncer. O “sumiço” de Queiroz se tornou uma sombra para o governo, eleito sob a bandeira do combate à corrupção. A reação de Flávio foi acusar o MP de querer persegui-lo para atingir o pai. Dizendo-se vítima de quebra ilegal do sigilo de seus dados, o senador foi à Justiça três vezes para tentar bloquear as investigações. Sem sucesso. Algumas perguntas permanecem sem respostas.A mais urgente delas: onde está o Queiroz?" (fonte)

Caso Queiroz atinge outros gabinetes - Jornal do Tocantins
Veja mais em: https://www.jornaldotocantins.com.br/editorias/politica/caso-queiroz-atinge-outros-gabinetes-1.1817011
Caso Queiroz atinge outros gabinetes - Jornal do Tocantins
Veja mais em: https://www.jornaldotocantins.com.br/editorias/politica/caso-queiroz-atinge-outros-gabinetes-1.1817011
 
Rio das Pedras, favela dominada pela milícia, onde Queiroz teria se escondido.



   "Há uma continuidade do Estado. O matador se elege, o miliciano se elege. Ele tem relações diretas com o Estado. Ele é o agente do Estado. Ele é o Estado. Então não me venha falar que existe uma ausência de Estado. É o Estado que determina quem vai operar o controle militarizado e a segurança daquela área. Porque são os próprios agentes do Estado. É um matador, é um miliciano que é deputado, que é vereador, é um miliciano que é Secretário de Meio Ambiente.   Eu sempre digo: não use isso porque não é poder paralelo. É o poder do próprio Estado.   Eu estou falando de um Estado que avança em operações ilegais e se torna mais poderoso do que ele é na esfera legal. Porque ele vai agora determinar sobre a sua vida de uma forma totalitária. E você não consegue se contrapor a ela." (fonte)






Caso Queiroz atinge outros gabinetes - Jornal do Tocantins
Veja mais em: https://www.jornaldotocantins.com.br/editorias/politica/caso-queiroz-atinge-outros-gabinetes-1.1817011
Caso Queiroz atinge outros gabinetes - Jornal do Tocantins
Veja mais em: https://www.jornaldotocantins.com.br/editorias/politica/caso-queiroz-atinge-outros-gabinetes-1.1817011

   A ideia de que a milícia combate os traficantes é simplesmente irreal, porque o se vê na realidade é que ela atua lado a lado com o crime. Uma pesquisa feita pelo Datafolha, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgada no Folha de São Paulo ouviu 843 pessoas na cidade do Rio de Janeiro entre os dias 23 e 25 de Janeiro deste ano. Segundo os dados, 29% dos moradores de comunidades têm mais medo dos milicianos que dos traficantes e policiais, 25% tem mais medo do tráfico de drogas, 18% temem a polícia e 21% têm medo de todos na mesma proporção. 7% não souberam responder. (fonte)


   "O Sacil chama a atenção porque os muros e portões de suas casas ganharam recentemente um selo, para identificar os moradores que são “contribuintes” da taxa criada pela milícia . Delimitado por várias cancelas que fecham as ruas, o local tem guaritas e vigilantes. E placas com o aviso “bairro seguro”.   É possível constatar que nem todas as residências têm os adesivos que indicam uma “ contribuição ” de pelo menos R$ 20 por mês. Os poucos moradores que aceitam falar demonstram medo. Segundo eles, os homens que cuidam da segurança circulam uniformizados. Nenhum exibe arma.





O Sacil chama a atenção porque os muros e portões de suas casas ganharam recentemente um selo, para identificar os moradores que são “contribuintes” da taxa criada pela milícia. Delimitado por várias cancelas que fecham as ruas, o local tem guaritas e vigilantes. E placas com o aviso “bairro seguro”.
É possível constatar que nem todas as residências têm os adesivos que indicam uma “ contribuição” de pelo menos R$ 20 por mês. Os poucos moradores que aceitam falar demonstram medo. Segundo eles, os homens que cuidam da segurança circulam uniformizados. Nenhum exibe arma.
Fonte: Último Segundo - iG @ https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-05-22/milicia-e-investigada-por-criar-bairro-e-cobrar-taxa-de-seguranca-no-rio.html



O Sacil chama a atenção porque os muros e portões de suas casas ganharam recentemente um selo, para identificar os moradores que são “contribuintes” da taxa criada pela milícia. Delimitado por várias cancelas que fecham as ruas, o local tem guaritas e vigilantes. E placas com o aviso “bairro seguro”.
É possível constatar que nem todas as residências têm os adesivos que indicam uma “ contribuição” de pelo menos R$ 20 por mês. Os poucos moradores que aceitam falar demonstram medo. Segundo eles, os homens que cuidam da segurança circulam uniformizados. Nenhum exibe arma.
Fonte: Último Segundo - iG @ https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-05-22/milicia-e-investigada-por-criar-bairro-e-cobrar-taxa-de-seguranca-no-rio.html
O Sacil chama a atenção porque os muros e portões de suas casas ganharam recentemente um selo, para identificar os moradores que são “contribuintes” da taxa criada pela milícia. Delimitado por várias cancelas que fecham as ruas, o local tem guaritas e vigilantes. E placas com o aviso “bairro seguro”.
É possível constatar que nem todas as residências têm os adesivos que indicam uma “ contribuição” de pelo menos R$ 20 por mês. Os poucos moradores que aceitam falar demonstram medo. Segundo eles, os homens que cuidam da segurança circulam uniformizados. Nenhum exibe arma.
Fonte: Último Segundo - iG @ https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-05-22/milicia-e-investigada-por-criar-bairro-e-cobrar-taxa-de-seguranca-no-rio.html

   "Saio cedo para trabalhar e só volto à noite. Não queria pagar a tal contribuição, mas acabei me rendendo. Todo mundo paga, e eles passaram a colocar os adesivos nas casas. Achei melhor não ser a única diferente. É uma atividade ilegal. Quem deve dar segurança ao cidadão? Tem que ser a polícia. É no mínimo estranho", disse uma moradora, acrescentando que, antes de começar a fazer os pagamentos, sua família foi assediada por alguns homens.   Pelas ruas do Sacil , homens circulam com um colete que tem emblema no peito e nas costas: “apoio”. O emblema tem um “S” estilizado, e se parece com o adotado por firmas de segurança privada. Porém, não há sinal da existência de empresa formal ou telefone para contato. O esquema de vigilância chegou também às ruas Anhembi, Pedro Teixeira e Criciúma, entre outras." (fonte da notícia)



   "Não venha dizer que o morador é conivente, é cúmplice do crime. Esse pessoal elegeu o Flávio Bolsonaro, que agora se descobriu que ele tem possivelmente vínculos com esses grupos? Elegeu. Mas que condições que essas pessoas vivem para chegar nisso? Essas populações são submetidas a condições de miséria, de pobreza e de violência que se impõem sobre elas.   Cinco décadas de grupo de extermínio resultaram em 70% de votação em Bolsonaro na Baixada.   Três gestões do PT no governo federal, 14 anos no poder, não arranharam essa estrutura. Deram Bolsa Família, vários grupos políticos se vincularam ao PT e se beneficiaram, mas o PT não alterou em nada essa estrutura. O PT fez aliança eleitoral, buscou apoio desses grupos.

   [...] Na verdade, as milícias vendem votações inteiras de comunidade. Aqui na Baixada como um todo, Zona Oeste. Fecham pacote. Eles têm controle. Eles têm controle preciso de título de eleitor, local de votação de cada título de eleitor, quantos votos vai ter ali. Eles são capazes de identificar quem não votou neles."  (fonte)



   Extorsões, execuções, estupros, grilagem de terras, tráfico de drogas... Não existem diferenças práticas entre as milícias e os demais grupos criminosos. A única diferença que alguém poderia apontar é o apoio que elas tem e seguem tendo do Estado e seus representantes. Por que as poucas vozes políticas que se erguem contra elas, sofrem ameaças e acabam silenciadas, seja pela morte física de seus combatentes, seja ideologicamente por palavras e mentiras.

Marielle Franco e o motorista Anderson, assassinados por milicianos

   É claro que existem sim policiais militares comprometidos com o bem-estar da sociedade e que zelam pelo dever de suas profissões. Quando se aponta "a banda podre da polícia", a ideia é justamente ir contra a ideia de que todo policial é corrupto e violento. Por que a realidade é que as coisas não deveriam ser assim, as pessoas não deveriam ter medo da polícia (mas tem, e com razão). Os policiais, por sua vez, deveriam ser sim mais valorizados e melhor treinados, agências fiscalizadoras externas à polícia o que permitiria uma atuação melhor que nas corregedorias internas.    Então, o problema está onde, nas críticas a P.M., ou nos policiais que deturpam os objetivos da organização?




   "A Polícia Militar não tem o título por acaso. Sua raiz é de fato militar, e seu objetivo mais comum, no mundo, é o de funcionar como uma corporação de reserva das Forças Armadas, para atuar no interior do país em situações de guerra ou conflito. Isso implica que a sua formação histórica é diferente dos agentes civis, assim como a sua formação, seus títulos de hierarquia (capitão, tenente, coronel e major), código penal e objetivos."





   "O tenente baiano Danillo Ferreira não vê tanta importância na pauta da desmilitarização, e analisa que mais importante é a atenção à integração das corporações (apesar da histórico desavença entre as duas) e à melhor gestão da segurança.   “Não é na estética militar, na exaltação aos símbolos, na prática da disciplina que reside o defeito das policias. É no desrespeito aos direitos, é na ‘filosofia de guerra’, na formação de um ‘guerreiro’, no privilégio à repressão truculenta que está disseminado nas instituições de segurança pública”, afirma. “Uma desmilitarização precisa atingir de forma incisiva esta cultura, e tudo que possibilita que ela sobreviva. " (fonte)
 

Conclusão (possível?)

  




    A conclusão é que a gente tá fudido. Obrigada e boa tarde.

    Brincadeira! (suspira)

   Enfim, foi uma viagem longa, eu escrevi pra caralho e a minha conclusão é que as duas obras analisadas dizem muito sobre o momento em que foram escritas e o nosso momento atual. Inclusive, eu tive muito trabalho pra terminar este artigo justamente por toda a gama de assuntos relacionados e complexos que coincidentemente envolviam muitos fatos recentes do noticiário. Desse modo, eu não pude deixar de abordar tudo em conjunto, mesmo o artigo tendo ficado imenso.

   Então é isso, leiam tudo ou leiam só uma parte dele, mas por favor, não permaneçam indiferentes. Se eu escrevi tanto aqui foi porque eu acho que esse é um tema muito importante pra essa geração e pras futuras e porque eu realmente penso que, independente de quem você tenha votado, ou da sua opinião ser mais ou menos de acordo com tudo que eu explanei aqui, acho que certos pontos são unânimes e merecem uma atenção especial.

   E por favor, deixem nos comentários se vocês concordam ou discordam em algum ponto, ficarei feliz em responder quando possível. Se você conhecer alguém interessado no assunto, ou melhor, alguém que não tem muito conhecimento sobre essa temática, mas que gostaria de saber mais, compartilha esse artigo. Pode ser que não seja uma perda de tempo tão grande lê-lo. Pra mim, não foi nenhuma perda de tempo escrevê-lo.


 



Até breve!

Referências:

Racismo institucional, o ato silencioso que distingue as raças


Se apenas a repressão resolvesse, os arrastões teriam sumido há 20 anos


PM confunde guarda-chuva com fuzil e mata garçom


O que se sabe sobre ação do exército com morte no Rio


Reinaldo Azevedo: Primeira penca de cadáveres de Moro- pacote proposto por ministro nem foi aprovado, mas já disse a que veio


The Intercept Brasil: Estudo sobre drogas que o governo escondeu

 
Desmilitarização da polícia? Um bate-papo com Túlio Vianna



2 comentários:

  1. Será que da para usar a unidade de medida "Pirulas de duração" para textos? Acho válido aqui haha

    Artigo sensacional que me fez ir atrás das fontes até. É um assunto que envolve tantas áreas do conhecimento que nem sei por onde começar. Bom, vamos lá:

    Falando da escrita do autor. Você sabe me dizer se existe alguma resistência literária a respeito dos "regionalismos" que você citou? Eu não conheço ele tão bem quanto a Conceição então não posso falar com propriedade do estilo de escrita, mas a partir da sua análise e dos trechos citados, a escrita do Geovani me remete bastante ao livro Capitães de Areia do Jorge Amado. Tanto que vi um crítico literário no Roda Viva (eu não lembro quem era sorry) comentar que como a primeira vista o livro do Jorge Amado não foi visto com bons olhos por conta dos regionalismos (no caso dele regionalismos da Bahia), e como foi uma grande surpresa que ele tenha vingado aqui, e principalmente no exterior. E é um paralelo ótimo de se fazer considerando que os contos do Geovani foram vendidos para 9 países. E lendo o "Capitães de Areia" eu tive a mesma dificuldade que você descreveu com o primeiro conto por causa das gírias.

    E falando em paralelos outro paralelo (esse nem tão bacana) que da para fazer quando o assunto é guerra ao tráfico como arma política de extermínio da população negra, é falar do War On Drugs (https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Guerra_contra_as_drogas) do Nixon na década de 70 nos Estados Unidos, e que deixou um legado maldito e reverbera até hoje aqui no Brasil nos setores mais conservadores, como exemplo de políticas públicas. Hoje em dia já se sabe que o próprio governo da época financiava o comércio de drogas em determinadas regiões no intuito de aumentar a criminalidade, e ter uma desculpa para poder exterminar as pessoas negras. O Marco Gomes cita isso nesse video aqui (https://www.youtube.com/watch?v=OhosMJ6dOw8&app=desktop). É um absurdo que em pleno 2019 alguém ainda acredite que tais práticas tenham alguma efetividade de facto.

    E outra coisa que eu queria falar a respeito do preconceito a religiões de matriz africana no Brasil, e que não tem muito a ver com o livro, mas serve à discussão é um causo que eu ouvi de um podcast (http://www.magickando.com.br/2018/09/26/ifa-com-nasi-magickando-27/). É uma entrevista com o Nasi o vocalista da banda Ira.

    Ele é praticante/estudioso da religião Iorubá e ele teve uma experiência muito legal na Nigéria. Ele conta que no local onde os praticantes dessa religião Iorubá iriam performar um rito com tambores, havia uma igreja neopentecostal na frente, e que num dado momento em que o culto evangélico tinha acabado as pessoas permaneceram na frente da igreja assistindo ao rito deles. E olha que demais os fiéis da igreja começaram a bater palmas no rítimo dos tambores. E ele depois conversando com os moradores da região de lá disse que essa demonização de outras religiões, mesmo dentre os convertidos ao Cristianismo, não existe. A visão deles é de muita deferencia e respeito para com o que eles chamam de religião dos pais e avós deles. Eu achei isso tão lindo e me fez pensar como essa intolerância religiosa que temos aqui no Brasil diz mais sobre a nossa cultura (racista) do que ao próprio cristianismo.

    E aproveitando que a Vila Vintém foi citada em um dos contos, eu vou deixar essa música de uma banda chamada Mulamba e tem tudo a ver com os dois posts, e recomendo que você escute.

    https://www.youtube.com/watch?v=bK2-tzH4fCk&app=desktop

    Bjuss e tudo de bom por ai :*


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  2. Hahah, eu acho que a medida seria "textão do face", mas deixa assim mesmo... Eu sei que preciso começar a me policiar pra não ficar prolixa e fazer artigos mais "enxutos". Vamos ver, né.

    Sobre a resistência aos regionalismos, foi uma coisa que eu tinha pesquisado para a parte 1, por conta nem tanto da presença disso nos contos da Conceição, que me parecem menos específicos (a ambientação poderia ser de uma favela em praticamente qualquer lugar, não só carioca), mas que está presente no sentido de serem livros de contos sobre lugares e personagens que refletem os problemas brasileiros. Não sei se minha leitura disso está correta, foi a impressão que eu tive quando pesquisei e também porque eu falei bem por cima da tendência universalista X regionalista no modo como certos livros são tidos como "clássicos da literatura universal", sendo que estão mais é "clássicos da literatura europeia". Quanto a essa resistência dos críticos, é verdade, nesse artigo aqui (http://www.cult.ufba.br/wordpress/24698.pdf) fala um pouco sobre como muitos críticos e estudiosos literários consideram o regionalismo como "datado". Citando um trecho logo da introdução:
    "Muitos estudiosos acreditam que o regionalismo é datado e teve seu apogeu com os romances da geração de Trinta. Outros acreditam que o gênero se transmuta e pode persistir enquanto persistirem traços da realidade que apontem para as diferenças regionais."

    Quanto a questão da Guerra às drogas do Nixon, eu também já tinha ouvido falar algo sobre em alguns canais gringos, mas tinha sido sempre no tom de "teoria da conspiração". Acho curioso esse tipo de enfoque da parte deles no assunto,mas como eu não me aprofundei muito, vou olhar os seus links e deixar esses vídeos em questão:Film Theory: Conspiração SOMBRIA de Zootopia!- (https://youtu.be/8nMmC3YvR6M) e 10 Conspiracy Theories That Turned Out To Be True(https://youtu.be/o-TFz6teM3M) que fala sobre o projeto MK Ultra, que parece ter sido um programa clandestino da Cia para testar drogas em seres humanos como forma de tortura e manipulação. É um assunto complexo e existem evidências que corroboram para sua existência, mas ao que parece o projeto foi abortado em 1972. https://super.abril.com.br/mundo-estranho/a-cia-criou-mesmo-um-projeto-para-controlar-mentes/

    E vou olhar também esse podcast foi bom você ter compartilhado, mostra bem como a convivência pacífica entre religiões e crenças diferentes é muito mais possível do que algumas pessoas imaginam. Infelizmente, me pergunto quantas pessoas no Brasil realmente gostariam que isso fosse uma realidade aqui também, porque é triste o modo como muitos líderes religiosos simplesmente "lavam as mãos" e fecham os olhos para o problema. Também ouvi essa música ontem, muito boa! Ilustra bem os dois artigos.
    Obrigada pelas dicas!

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