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sábado, 18 de julho de 2020

Expressões literárias manjadas e o que fazer com elas






E aí, sentiram minha falta?
Nossa, já faz uns 11 meses desde o artigo passado. Nesse quase um ano de hiato, uma pandemia surgiu matando milhares e prejudicando a economia, um tufão e uma nuvem de gafanhotos atemorizaram o sul do país, protestos contra a violência policial tomaram as ruas pelo mundo, estátuas de racistas foram derrubadas e o Felipe Neto agora é um "ícone da esquerda" (?) no twitter. Enfim, todo tipo de loucura aconteceu.

A próxima seria a JK deixar de falar besteiras no twitter, mas eu não sou otimista assim



Mas você não veio aqui pra ler sobre isso. Você veio ler sobre expressões manjadas de fanfics (que não se resumem só a elas, na verdade). Você sabe, coisas que vemos repetidas ad infinitum nos fanfiction nets e wattpads da vida: cenho, línguas travando batalhas intermináveis, orbes da cor do arco íris fitando-se longamente... Vocês entenderam.

Com isso, não estou aqui pra dizer o que alguém pode ou não escrever. Quando se trata de literatura (incluindo fanfics), a tela em branco é toda sua. Minha intenção com esse post não é debochar de quem usa essas expressões, até porque eu com certeza já as usei em diversos momentos.

O que eu proponho é uma reflexão: por que algumas metáforas são tão usadas em detrimento de alternativas mais criativas e variadas? Eu acho que tem várias razões para isso, dentre elas:

A inexperiência de nós, escritores;

Influência de livros traduzidos;

Pouca variação de leituras;

Quando eu digo inexperiência, não é apenas no caso das fanfics, eu digo isso num modo geral: com o advento das plataformas de publicação independente como Amazon Kdp e Clube dos Autores, cada vez mais pessoas publicam, vendem e compartilham seus escritos. Eu acho isso maravilhoso. Por mais que seja um caminho difícil, é um passo a frente na democratização da literatura.



Por outro lado, significa também que muita gente se lança no mercado sem ter ideia do que se espera de um autor, tanto em termos de comportamento frente a críticas, quanto a própria escrita. E de novo, eu não tô aqui pra moralizar ninguém, eu mesma me incluo nessa categoria. Eu não tenho muita experiência, mas quero acreditar que eu aprendi alguma coisa desde então.

Nesse tópico "inexperiência", incluo tanto a quantidade de páginas lidas quanto escritas e a própria intimidade dos autores com esses aspectos "técnicos" do tipo público-alvo, divulgação, editoras, etc...

Quem lê pouco não consegue formar uma noção do que é possível fazer com literatura. A pessoa fica sempre se perguntando "será que eu posso escrever assim, ou assado?", sem saber que alguém já fez isso antes e como funciona ou não. Daí, acaba repetindo o que já conhece por não saber que ele pode fazer de outros modos. Tem um monte de escritores morrendo de medo de escrever diferente, todos procurando uma fórmula, sendo que isso não existe. Existem sim orientações, mas são apenas isso; um escritor mais experiente pode e deve quebrá-las sempre que possível.

Outra coisa que me apontaram é a influência de livros traduzidos. Afinal, a maioria dos best-sellers de ficção no Brasil geralmente são estrangeiros. Nada contra, mas um problema desses livros é que eles trazem consigo um jeito muito próprio da língua em que são escritos. Isso varia de acordo com o estilo de cada autor, mas uma característica comum deles é uma maior presença de vírgulas e sentenças que se estendem num mar de vírgulas. Como resultado, frases traduzidas geralmente acabam ainda mais longas pois palavras em português tendem a ser maiores: algo como "shrugged" vira um "deu de ombros". Inclusive esse "dar de ombros" é uma dessas expressões que a gente vê muito nesses livros e eu nem faço ideia de se era mesmo comum no português ou se acabou sendo importada. Isso também não faria diferença, não fosse o uso tão exagerado dessa e de outras. É como se não houvesse outro jeito de descrever quando uma pessoa está cagando pra alguma coisa... ¯\_(ツ)_/¯

 Ler mais livros de autores nacionais seria a solução então? Hum, talvez... mal não faria.

Pouca variedade de leituras é parte desse problema: brasileiros em geral lêem pouco, e quando lêem ficção, tendem a se concentrar em um ou dois gêneros. Acho que parte disso se deve ao preço dos livros ser elevado, o que faz com que o leitor médio (e também escritores em potencial) tenha medo de arriscar pagando por algo que não sabe se vai gostar. E por mais que o meu lado meio "masoquista" sentencie que um bom escritor deveria ler tudo que caia em suas mãos, eu acho que ninguém deveria perder tempo lendo algo que claramente não lhe agrada. Ler livros "ruins" pra entender onde eles falham é uma coisa; ler por obrigação, só "porque todo mundo leu" ou "porque é um clássico", é se torturar, e você não está mais no ensino médio (eu espero).

Ler livros de vários gêneros é importante por duas coisas: aumenta seu repertório de palavras e narrativas, ajudando a desenvolver seu estilo; te leva a entender melhor qual o seu público e o que ele espera encontrar no seu livro que não tem nos outros. Quem lê Stephanie Meyer espera algo diferente de quem lê André Vianco. Além disso, livros de diferentes temáticas e épocas ajudam a entender a origem de clichês e isso é base para reescrevê-los de forma distinto e original.






"Mas Jessicolírio, eu já usei e abusei de várias dessas frases feitas nos meus dois milhões de fics BTS, e se eu quiser melhorar minha escrita neste exato momento?"

Então, eu diria que o melhor jeito é reler o que você escreveu e procurar por expressões ou frases muito repetidas. Se você reler seu texto do final para o começo, vai perceber mais facilmente erros de digitação, palavras "comidas" e repetições de toda espécie. Sério, minha vida se divide entre antes e depois dessa dica de revisão.

Você também pode fazer uma lista com palavras e expressões que você tem vício em repetir. Por exemplo, no meu livro "Dois Pais", eu repetia muito coisas como "fulano suspirou", "com o coração aos pulos". Uma vez tendo percebido quais palavras ou frases você usa com muita frequência de modo não proposital, é só deletar ou trocar por um similar.
Sem mais enrolação, vamos a essa pequena lista de chavões de fics que talvez ajude.


"Acordei com o sol batendo no meu rosto."



Dar de ombros:

"Demonstrar não estar preocupado com um acontecimento e/ou não dar credibilidade a alguém ou alguma coisa. Ex.: A garota levou uma reclamação, mas deu de ombros, pois não se importou." (verbete).
Como substituir: “desconsiderou”, “deixou de lado”, “deixou para lá”, “ergueu os ombros com indiferença”, “fez pouco caso”, “não deu bola”, “deixou por menos”.


Franziu a testa: 

Quando o personagem discorda de algo ou se preocupa ou fica confuso, essa é batata: só não ganha mais minha antipatia porque existe “franzir o cenho”, mas já vamos chegar lá. Variações como “franziu as sobrancelhas”, “franziu os cantos da boca” também imperam e contra essas não tem muito o que se fazer a não ser tentar explorar outros gestuais que expressem a ideia pretendida.

Como sugestão para faces discordantes ou iradas: “baixou as sobrancelhas”, “arqueou as sobrancelhas”, “estreitou/ contraiu os lábios”, “amarrou a cara”.
Para uma expressão mais confusa, “franzir as sobrancelhas” ou “coçar a cabeça”.
No caso de preocupação, “levar a mão ao rosto”, “levar a mão a nuca”, ou algum outro tipo de auto toque (levar a mão no cabelo, nos braços, à boca, etc...) também serve de indicador.






Franziu o cenho: 

Pra começar, como diria o fantoche Marcelinho: o que é cenho?
“Substantivo masculino: aspecto carrancudo; semblante severo, sóbrio. Nome dado ao rosto; semblante: franzir o cenho.” (verbete).

O uso mais arraigado dessa expressão tão incomum no dia a dia das pessoas provavelmente veio da tradução do inglês “to frown”, que significa basicamente isso, fazer uma cara feia. Para contornar o uso excessivo, e caso você também já tenha gasto seu estoque de “franzir a testa”, experimente tentar descrever o ato de uma forma passiva, por exemplo, ao invés de dizer “fulano franziu a testa”, escrever “uma ruga se formou na testa de fulana”.   Haja creme anti rugas!
Outras sugestões: “estranhou”, “desconfiou”, “fez uma cara fechada”.







Cerrou os olhos:  

Outra que aparece muito. Por que fulana fechou os olhos é simples demais quando o autor quer dar uma dramaticidade extra pra cena (na cabeça dele).
“Olhos cerrados”, punhos fechados é produto dela também, e eu vou admitir que até gosto. Mas no caso de não querer repetir, como faz?
“A expressão "cerrar os olhos" pode ser utilizada em dois sentidos, seja quando alguém está com muito sono e com os olhos quase fechando para dormir, ou um eufemismo para a morte.
Exemplo: "O menino estava cerrando os olhos na aula" ou "A senhora cerrou os olhos para sempre".
Outra expressão bastante comum é "cerrar os dentes", que pode ser usada como uma conotação do sentimento de raiva, angústia ou ansiedade.”(verbete).

Sugestões: “apertou os olhos” (no caso do personagem só os fechar por um incômodo ou tristeza, raiva). Não tenho outras sugestões além dessa. 




Fitar: Fulano “fitou” Sicrano com seu olhar de cachorro morto.
(fi.tar)
v.t. (verbo transitivo) 1. Fixar a vista em uma pessoa, um animal ou uma coisa; olhar. (verbete).

Sugestões: “avistou”, “percebeu”, “observou”, “contemplou”, “mirou”, “encarou”, “viu”.


Cerrou os punhos: 

Fechar os punhos. É muito clichê para demonstrar que o personagem está com raiva ou se preparando para um enfrentamento. De novo, não tem muita saída, o melhor é procurar outros gestos que traduzam o mesmo sentido.


Mordeu os lábios: 

É tido como um sinal de insegurança, nervosismo. Do modo como os personagens fazem isso direto, pode ser caso de uma compulsão inclusive. Uma sugestão seria “encolheu os lábios”, “repuxou a boca”.




As línguas que se envolvem numa dança/ luta árdua: 

Quem escreveu isso primeiro deve ter achado genial, mas agora, depois de milhares de línguas dançando e lutando, precisamos de mais criatividade que isso. Beijos são ótimos, mas que tal dar  enfoque também para as outras partes do corpo? O mais importante na hora de descrever um beijo ou qualquer cena íntima é se lembrar de quem são os personagens em questão. Uma descrição mais abstrata ou mais realista, tudo isso pode variar, mas as personalidades deles têm de estar ali. Músicas tem muito isso, já que não é um meio visual, precisa usar linguagem poética pra descrever intimidade. E claro, a poesia também pode ajudar a pensar em outras descrições possíveis.


Como se lesse seus pensamentos: 

O personagem estava pensando em X coisa e então aparece essa bendita frase na narração para em seguida outro personagem se intrometer no assunto ou fazer um comentário. É ruim? Não se você usar bem esporadicamente. Mais que uma vez ou duas e vão pensar que se trata de um fenômeno, o personagem telepático.

Sugestão: “Adivinhando seus pensamentos”. Ou “Bem quando pensava nisso, fulano falou”. “Fulana o conhecia tão bem que praticamente leu sua expressão”

As orbes de fulana fitaram as de sicrana:

 Orbe é o tipo de coisa que me chocou quando eu li. Sério, quem no mundo contemporâneo além dos nerds, fãs de fantasia e fanfiqueiros saberia o que é uma orbe? O significado é "corpo esférico em toda a sua extensão; esfera, globo, redondeza". Geralmente aparece em fics e livros como sinônimo para os zóios das pessoas. Igual às outras metáforas batidas, o que eu sugiro é buscar algo simples e significativo no lugar, como descrever a porra dos olhos do personagem com algo que os caracterize:
"Os olhos de fulano cintilavam em chamas vivas" (exemplo improvisado, não riam de mim por favor).
Machado descreveu os olhos de Capitu como "Olhos de ressaca", e Conceição Evaristo descreveu os olhos da mãe do conto homônimo como "Olhos d'água, águas de mamãe Oxum." Enfim, o universo é o limite.

 


O loiro, o moreno, o furta-cor...

Parece catálogo da Koleston... Sério, não façam isso. Além de ser irritante, pode ficar confuso à medida que mais e mais personagens entrem em cena. Em vez disso, melhor seria usar um substantivo que seja mais único: "o estudante, a professora, etc...". 

Se por outro lado o medo é estar sendo preconceituoso ao descrever um personagem como "negro", saiba que preconceito seria achar que etnia é xingamento. Não tem nada errado em dizer negro, pardo, oriental, branco, etc. Outras denominações como "mulato" e "cafuzo" são controversas e não sei até que ponto seriam ou não discriminatórias, mas muitas pessoas acreditam ter uma conotação negativa que viria de "mula". Por via das dúvidas, melhor evitar essas. 

Não sou a pessoa mais apta a falar nesse caso, mas pelo que eu pesquisei, descrever um personagem negro apenas como "moreno" é ruim porque isso também pode ser entendido como uma pessoa branca de cabelos escuros. Usar metáforas com comidas para descrever cor de pele também é malvisto por ter uma ligação com fetichização e estabelecer uma relação de dominância, como se a pessoa em questão fosse uma comida a ser "consumida". Fica parecendo cardápio de lanchonete. Imagine se toda pessoa branca fosse descrita como "branca como maionese", ou clara como "miolo de pão".

De novo, eu não sou autoridade nenhuma (muito menos nesse caso) pra determinar o que cada um escreve. Eu acho que tudo depende do contexto. [Editado: Igualmente falar de personagens descrevendo-as como "asiáticas" apenas é errado, porque a Ásia é um continente enorme e os asiáticos não são todos iguais. Do mesmo modo, falar simplesmente que o personagem é oriental porque tem olhos puxados é visto como simplista e preconceituoso porque tem base em estereótipos racistas. Os olhos de orientais podem ser de formatos bem diferentes entre si. Para algumas dicas sobre como descrevê-los, veja os links no fim do artigo.] 
 
Além disso, relacionar pessoas negras, orientais ou indígenas com produtos ligados à escravidão e exploração como café e cacau é bastante problemático. Fora que personagens brancos muitas vezes nem sequer são descritos assim, como se todas as pessoas fossem brancas "por definição" e você só precisasse descrever uma quando foge disso. É um tópico complicado e vai bem além de apenas a descrição da pele dos personagens.





"Então como eu faço, Jeguéssica?", você me pergunta. Bom, simplesmente dizer a etnia da pessoa funciona. Comparar com alguns tipos de elementos quando se quer um tom mais poético, como minerais (não carvão, pelo amor de Deus), metais e pedras preciosas também pode ser feito, eu acho. Essas dicas eu tirei dos artigos linkados abaixo, mas é claro que a melhor forma de saber como descrever pessoas de outras etnias (ou qualquer outra característica, a propósito) que não a sua pode ser lendo mais livros e fics escritos por essas pessoas, livros que tragam essa representatividade. Ajuda não só em questões assim, mas também em outras, culturais e sociais.

Você também pode pedir que alguém pertencente a minoria em questão leia seu texto, desde que você ouça o que a pessoa tiver a dizer (contanto que ela queira; pelamordedeus, se a pessoa disser não ou parecer minimamente incomodada com isso não vá encher o saco dela que ninguém é obrigado a dar aula de representatividade pra você não. Fazer parte de uma minoria é estressante por si só e fica pior quando cobram dos indivíduos que falem sobre o sofrimento deles só pra depois minimizar o que eles apontarem como preconceituoso ou problemático. Não façam isso).
 
Claro que essas são apenas sugestões. Eu não sou a dona da verdade e ninguém precisa de um PhD para escrever uma fic ou livro. Que horror seria se fosse esse o caso.
 
Por hoje é isso. Boa escrita pra vocês, e parafraseando o Crowley: Você sabe o que fazer, então faz com estilo! 




Links úteis:







Descrevendo olhos asiáticos














Resenha de mangá: O marido do meu irmão

  Eu vinha escrevendo essa resenha desde agosto, mas só agora em outubro que eu consegui atualizar o blog... Pra vocês verem. Não sei se foi...