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sábado, 26 de junho de 2021

Sherlock Holmes e o Brasil, ou, Que diabos o Conan Doyle fumava?


 


Sei que o título soa um pouco agressivo, mas eu juro que estou me controlando...

Como alguns de vocês sabem, eu gosto bastante de Sherlock Holmes em geral. Eu não assisti a série "Sherlock" com o ator que faz o doutor Estranho, mas li boa parte dos contos e romances de Sir Arthur Conan Doyle e assisti os filmes com o ator que fez o Homem de Ferro. Ah, e eu também gostava bastante do Ratinho Detetive (o filme da Disney) quando era criança.




Esse parágrafo que falo sobre Sherlock Holmes citando diversos outros produtos midiáticos é puramente intencional. Acho que demonstra como ele é parte indissociável da cultura pop e presente desde games até os mais inimagináveis produtos.

A minha medida de fama é a pessoa ter um travesseiro com a imagem dela


Eis que em meio às minhas leituras de pandemia, peguei o volume 4 do meu box das obras completas de sherlock holmes pra ler, e me deparo com isto:

"[...] Como ela morreu, eu não sei, mas tenho certeza de que ele infernizou a vida dela. Ela era uma mulher dos trópicos, brasileira de nascimento, como o senhor deve saber."



Este trecho é do conto "O problema da ponte Thor", que estranhamente, não tem nada a ver com o super herói da Marvel. É sobre o misterioso homicídio da sra. Gibson, a esposa de um magnata americano explorador de ouro que de acordo com o testemunho dos empregados, teria ocorrido por uma disputa amorosa entre ela e a jovem governanta deles, a srta. Dunbar. No caso, a vítima e (spoiler: também vilã, que se suicidou para incriminar sua rival) é descrita como uma "mulher brasileira", "tropical de nascimento e tropical de natureza, filha do sol e da paixão" de acordo com o empregado, personagem do conto.



Minha primeira reação ao ler foi "Nossa, que coisa patética" e minha segunda reação foi "caralho, ele falou do Brasil?" 

Por que a coisa que mais chama a atenção de brasileiro é quando algum gringo da gente. Duvida, olha a quantidade de comentários em português brasileiro nesse vídeo:





Não sei por que isso acontece, mas imagino que seja quase visceral de dizer "espera um pouco, veja bem...", parecido quando criticam família: todo mundo de dentro pode brigar, mas ai de alguém de fora falar qualquer coisa. 

Nesse caso, tá bem claro onde o meu título queria chegar: esse é só um exemplo de um problema bastante presente nos contos e histórias do Sherlock Holmes escritas pelo Arthur Conan Doyle que é a xenofobia e o racismo com que o autor trabalhou alguns dos suspeitos e vilões de seus casos. 

Claro, é perfeitamente compreensível que esse problema exista, dada a época em que foram escritos e o contexto do autor, é um reflexo da mentalidade que existia, mas isso não deve ser uma desculpa pra normalizar esse pensamento. De acordo com a Wikipédia, O conto em questão foi publicado em 1922 na The Strand Magazine (UK) e na Hearst's International (US). Para termos um parâmetro, em 1926, editores estadunidenses já consideravam "O presidente negro", escrito por Monteiro Lobato (que financiava jornais eugenistas, diga-se de passagem) como um livro racista. Então, por mais que o pensamento retrógrado da época seja algo a ser considerado, não dá pra dizer que era um pensamento unânime, até por que, certamente nunca é.

"Ah, mas o Doyle já era um sexágenário, ele não podia saber que era errado." O argumento da idade é sempre uma desculpa reserva, afinal, quem de nós nunca ouviu alguém mais velho falando bobagens? Por outro lado, ser idoso nunca deveria ser desculpa pra deixar de aprender com os erros.

O que eu quero aqui não é "problematizar" o autor e a obra do jeito que a internet costuma fazer, até porque eu sou uma zé ninguém perto dele, né? Não existe cancelamento pra uma obra e um autor tão influentes na cultura pop. Mas eu acho importante que os fãs e leitores de Sherlock Holmes conheçam esse lado meio indigesto e tenham o senso crítico de reconhecer os fatos. Pra mim, saber desse e de outros deslizes não foi bem uma surpresa porque meu livro preferido do Sherlock, o Cão dos Baskervilles, já contava com um pequeno comentário sobre uma coadjuvante costa-riquenha, descrita como tropical e exótica, que eu considerava um pouco nessa linha. Não sei se era exatamente ofensivo, mas era algo que me fazia levantar a orelha, digamos assim. No livro, Sherlock chega a dizer baseado apenas em sua origem que essa mulher seria capaz de perdoar tudo do marido, menos uma traição. Por que mulheres "latinas" não perdoam traição.



Eu adoro esse livro e adoro os contos, mas esse tipo de coisa é incômoda e imagino como deve ser para alguém diretamente afetado por essas falas.

Não tô aqui pra apontar se alguém deve ler isso ou aquilo, só quero compartilhar a sensação engraçada de vergonha alheia que eu tive com esse e diversos trechos do conto; o mesmo não posso dizer de outros do autor que são francamente insuportáveis e ruins mesmo, com racismo flagrante contra negros e povos ciganos. 

Por exemplo, no conto "O caso do círculo vermelho", o bandido é descrito pelos personagens como um homem negro com características animalescas, e perseguia um casal de italianos, em especial a mulher, descrita como uma bela italiana cujo rosto estava pálido de medo. Presumidamente, branca: 

"Eu havia despertado nele aquilo que ele chamava de 'amor'- amor de um selvagem, de um bruto.[...] avançou e me enlaçou nos braços fortes, apertou-me como um urso, me cobriu de beijos e me implorou para ir com ele."

 


Não acho que precise explicar qual o problema de uma representação desse tipo, né? A imagem do homem negro bruto e animalizado perseguindo uma pobre moça branca foi muito explorada por racistas na mídia, em especial estadunidense como no filme " O Nascimento de uma nação". 


Infelizmente, essa não é a única vez que um personagem negro foi assim descrito nos contos. E o problema nem é que haja vilões e antagonistas de outras etnias além da branca: o problema é que enquanto os de etnia branca geralmente são descritos como bandidos até "admiráveis" em sua inteligência e outras características que os tornam um pouco mais humanizados, os demais são sempre mostrados como "selvagens ignorantes", brutos e sem qualquer característica que lhes defina além disso. E nem vou falar da vez em que Sherlock descobriu que o vilão sinistro por trás do ataque a um bebê era... uma criança com deficiência.

Bem, se estiverem curiosos, podem ver essa lista dos contos do Sherlock Holmes em inglês, do pior para o melhor. O estilo dela é bem curto e engraçado, e além de mostrar todos os contos com possíveis gatilhos de preconceito, também mostra onde estão os momentos mais shippáveis entre Sherlock e Watson no cânone. De nada.

De resto, não vou perder meu tempo resenhando o conto, porque eu realmente não achei ele nada demais além de fraco. A conclusão é até interessante, mas tudo no mistério parece girar ao redor do fato da vítima ser uma brasileira de "sangue quente" e passagens como essa distraem de todo o resto: 

"Ela estava louca de ódio, e o calor da Amazônia estava sempre em seu sangue."


"Eu tenho o olho do tigre e lagarto, cobra e macaco..."


Uma coisa interessante que eu percebi também foi que "O problema da ponte Thor" não é a única vez em que o nosso país é mencionado nas histórias do Sherlock Holmes: existe uma menção à Pernambuco, que seria o estado de origem da vilã do conto "A aventura das três cumeeiras". E só pra constar, esse é outro conto péssimo que já começa com uma descrição racistíssima (se é que essa palavra pode existir). Surpresos?




Além desse, me disseram que "O caso da Vila Glicínia" também teria uma menção indireta ao Brasil, mas na forma de um antagonista descrito como um tirano com ares de imperador, que seria ninguém mais, ninguém menos que Dom Pedro II ???? 


Sherlock segurando uma galinha. Agora posso morrer em paz


Infelizmente, eu li o conto, e não, ele não era o Dom Pedro II, vocês podem sossegar o rabo ansioso de vocês, era só Dom Juan Murillo, um personagem (acredito eu) fictício que teria sofrido um levante do povo de seu país fictício na América Central e fugido para a Inglaterra, onde aterrorizou os locais com os "rituais pagãos" que ele e o criado "selvagem" praticavam... É, isso só fica pior. 


Esse gato tá um pouco grande, não?


Agora, saindo um pouco do assunto Sherlock Holmes, acabei descobrindo que dentre os romances e contos do autor que não tem a ver com o personagem, existe um conto chamado "O gato brasileiro". Ele foi publicado primeiro em 1898, e aqui no Brasil saiu pela Editora Bandeirola na coletânea "O Doutor Negro". Whait a minute...

Ora, ora, ora...


É um conto de mistério e terror, muito parecido com os do Alan Poe, dizem. Cá entre nós, não acho que algo com esse título possa ser assustador, mas considerando a época em que foi escrito, devia estar na lista de coisas macabras para os ingleses vitorianos, junto com coisas como andar de bicicleta e tomar ar fresco.

Bom, não há muito o que fazer, a não ser concluir que Arthur Conan Doyle era um homem do tempo dele, para bem e para mal (principalmente para mal). Ele sempre escreveu contos e histórias com elementos racistas, mas porque tantos de seus últimos contos são lotados desse problema, eu não sei dizer. É como se, de alguma forma o autor implorasse que alguém talvez dissesse "Ei, pare de escrever esta merda!" hum...


Ou talvez ele só tenha sido substituído por um bando de chimpanzés com máquinas de escrever, mas daí é especular muito


E antes que me acusem de anacronismo, isso foi uma piada, ok? É um fato notório que o autor detestava ser sempre ligado ao personagem do Sherlock Holmes, pois isso ofuscava todo o resto de suas obras. Então, pra mim, imaginar que ele poderia escrever alguns desses contos de muita má vontade só pelo dinheiro e talvez torcendo pra alguém perder o interesse no personagem não parece tão implausível. 


Por outro lado, eu também não sabia, mas o Conan Doyle também é autor de um livro denunciando as atrocidades e crimes cometidos no Congo sob domínio de Leopoldo II, rei da Bélgica. Sobre a "partilha" do continente africano e a "compra" do Congo, cito esse trecho da wikipédia: 


"Num ofuscante espetáculo de virtuosidade diplomática, Leopoldo obteve da conferência não somente acordo na transferência do Congo para uma de suas muitas células filantrópicas, tampouco para sua autoridade de Rei dos Belgas, mas simplesmente para si. Ele se tornou único dono de 30 milhões de pessoas, sem constituição, sem supervisão internacional, sem ao menos ter estado alguma vez no Congo, e sem mais do que uma meia dúzia de seus obedientes tivesse ouvido falar nele."



 

É um capítulo muito triste da história e que eu aconselho qualquer um (principalmente brancos) a pesquisar e saber mais a respeito. Agora, se tal livro era parte de um movimento político inglês (o que eu suspeito muito) ou se tinha também algo das opiniões do autor, eu não sei dizer. O que eu sei é que se mesmo alguém como Doyle foi capaz de ver o absurdo que aquilo era em 1909, é porque a situação devia estar muito feia. Isso não ameniza as coisas que o autor escreveu em suas demais obras, mas mostra como é muito comum e possível ser racista mesmo sem se ter consciência disso ou intenção. Se fosse assim, tudo seria simples.


Finalizando numa nota menos depressiva, Arthur Conan Doyle talvez tivesse alguma fixação estranha pelo Brasil, talvez pressentisse o caos e a loucura que esse país seria no futuro, ou talvez simplesmente não se lembrasse dos outros países da América do Sul. Mas assim como ele não se esquecia do Brasil, o Brasil também não se esqueceu dele:



"Nesta história o famoso detetive inglês tem suas faculdades analíticas e seu senso de observação afetados pelo calor dos trópicos e por circunstâncias inesperadas. Em uma perseguição ao misterioso assassino Sherlock tem de parar por causa de um vatapá o qual lhe gerou uma dor de barriga."

 

 Carma is a bitch, né Doyle?

E acho que encontrei minha próxima leitura. Aguardem.


  

Resenha de mangá: O marido do meu irmão

  Eu vinha escrevendo essa resenha desde agosto, mas só agora em outubro que eu consegui atualizar o blog... Pra vocês verem. Não sei se foi...