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sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Good Omens e seus temas (quase) inefáveis







        "A Bíblia nos diz para amarmos nossos vizinhos e também para amarmos nossos inimigos porque, geralmente, eles são as mesmas pessoas." G. K. Chesterton



    Isso era inevitável, meus amores. Quero dizer, a essa altura do campeonato acho que todo mundo que me segue em alguma rede social já deve ter percebido que nesse último mês eu adquiri uma verdadeira obsessão por Good Omens, esse que é o mais recente sucesso da Amazon Prime. Então, é claro que eu precisava escrever um artigo a respeito.







    Good Omens, que significa "Bons Presságios", ou como foi chamada aqui no Brasil (por algum motivo que eu não faço ideia), Belas Maldições é um livro que foi recentemente adaptado numa série de seis capítulos sobre um demônio e um anjo tentando sabotar o Apocalipse, não porque seja "o certo a fazer", mas apenas porque ambos gostam demais de viver na terra, com todos os confortos e invenções humanas. Enquanto isso, seus respectivos lados (Céu e Inferno) querem travar uma guerra final às custas do mundo e de tudo o que estiver nele.





    E no meio disso você tem ainda uma ordem de freiras satanistas, um Anticristo encarnando como um garotinho de onze anos numa cidadezinha da Inglaterra, uma ocultista com a missão de impedir o Armageddon usando as previsões do único livro de profecias reais, um exército de caçadores de bruxas formado apenas por um velho aposentado e um técnico de TI virgem e sem jeito com computadores, as personificações motorizadas dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, e eu acho que já fiz você leitor, se perder aqui...




    Em linhas gerais, o enredo principal é sobre os dois protagonistas sobrenaturais, Crowley e Aziraphale, que aqui são interpretados como uma espécie de agentes ou de funcionários públicos, muito mais do que simplesmente seres do bem ou do mal. E embora estejam em lados opostos, percebem-se tendo em comum uma apreciação pela humanidade, algo que seus respectivos superiores não compartilham:


"O Acordo foi muito simples, tão simples, na verdade, que nem merecia a inicial maiúscula, que recebera simplesmente por estar em vigência há tanto tempo. Foi o tipo de acordo sensato que muitos agentes isolados, trabalhando em condições problemáticas muito longe de seus superiores firmam com seus adversários quando percebem que têm mais em comum com seus oponentes próximos que com seus aliados remotos. [...] Se um estava indo para Hull para uma rápida tentação, fazia sentido ao outro ir até o lado oposto da cidade promover um breve momento de êxtase divino padrão. Aquilo acabaria sendo feito de qualquer maneira, e ser sensato dava a todos mais tempo livre e reduzia despesas."




    Através do Acordo firmado entre eles, os dois formam um laço que começa pela conveniência e avança ao longo das eras, chegando aos dias atuais, quando Crowley é encarregado pelo Inferno de entregar o bebê Anticristo à ordem de freiras satanistas, que o trocariam pelo bebê de um diplomata americano para que ao atingir a idade de onze anos ele traga o Fim do Mundo.



   Mesmo hesitando, o demônio mais estiloso que já existiu cumpre a missão, sem saber que uma confusão entre as freiras levaria o filho do Coisa Ruim a acabar no lar de uma família simples de Tadfield, uma cidadezinha inglesa. Como nem ele e nem Aziraphale querem que o mundo acabe, eles passam onze anos disfarçados de empregados tentando influenciar o garoto para impedir o surgimento de seus poderes, sem saber que o verdadeiro Anticristo está a quilômetros de distância e prestes a iniciar o fim do mundo.



    Essa é essencialmente uma comédia de erros onde a incompetência tem um papel principal, pois assim como as freiras se confundem, anjo e demônio também cometem o mesmo engano e passam todo o resto da história tentando localizar o garoto certo para impedi-lo, ou mesmo matá-lo se for preciso. Sim, porque é do Anticristo que estamos falando. 

"Vocês acabaram com a TV Globinho, agora é a vez de VOCÊS ACABAREM!!"


   É chover no molhado dizer que tanto o livro quanto a série são maravilhosos, em especial a adaptação, por trazer elementos novos a uma história já espetacular e por seu elenco com estrelas como David Tennant, Michael Sheen, Miranda Richardson e Benedict Cumberbatch, sem falar da participação de Neil Gaiman no roteiro.





    Recheada até a tampa de Queen e de referências a Doctor Who, essa série também é uma homenagem sincera e linda a Terry Pratchett, que infelizmente faleceu em 2015, antes de ver o livro que ele escreveu em coautoria com Gaiman transposto para as telas.





   Eu poderia ir adiante e enumerar quinhentas razões pelas quais em questão de apenas um mês eu caí de amores por essa história e sua adaptação, mas eu acho que apenas falar de algo que eu gosto nessa perspectiva seria um redundante e tedioso exercício de egocentrismo. Em vez disso, eu quero explorar um outro aspecto que eu acho muito interessante e pouco mencionado em resenhas que eu vi por aí na internet brasileira, tanto sobre o livro quanto sobre a série: os temas.

    Sim, porque uma das coisas mais impressionantes e de longe menos comentadas em Good Omens são os temas. Veja bem, longe de eles estarem carimbados no livro ou de serem martelados o tempo inteiro na cabeça do leitor, os temas de Good Omens ficam exatamente onde deveriam ficar, no pano de fundo da narrativa.





  Desde indagações filosóficas sobre a falsa dicotomia entre Bem e Mal, passando por questionamentos de fundo religioso sobre o que seria o real plano divino, se é algo que está escrito em um livro (ou livros, se formos tomar o caso de outras religiões) ou se é algo que estaria além da compreensão humana, você encontra dezenas de coisas que te fazem ficar pensando por dias.

   E antes que alguém possa dizer, eu estou ciente de que a maioria das pessoas que leu esse livro identificou ao menos essa camada dele. O que eu quis dizer com os temas não estarem sendo tão comentados quanto o lindo ace romance entre os personagens do David e do Michael é que mesmo percebendo as pequenas críticas e alfinetadas no pensamento religioso em geral, a maioria ignora totalmente o contexto em que a obra veio ao mundo.

   Após numerosas noites perambulando pelo fandom no Tumblr (que desde então tem transformado todos os blogs em depósitos de fanarts da série, tal qual o Bentley de Crowley transforma todas as fitas em O Melhor do Queen), eu finalmente descobri o que acredito que seja um dos motivos pelos quais a série e o livro ressoaram tanto comigo e com tanta gente desde que foram lançados. De longe, o tema que se sobressai nesse pano de fundo caótico é definitivamente uma mensagem que tanto o original quanto a adaptação entregam de novo e de novo: Os poderosos não se importam com você. A não ser que você fique no caminho deles. Daí, eles se importam bastante.


 É, eu sei, incrivelmente real, certo? Agora, um pouco de contexto:



ANJOS E DEMÔNIOS NUMA GUERRA FRIA (e você achando que eu não ia falar de política aqui de novo?)




    Belas Maldições foi escrito por Neil Gaiman e Terry Pratchett. As principais fontes de inspiração para a ideia foram o filme "A profecia" (The Omen) de 1976 e a série de livros infantis "Just William" da Richmal Crompton, além de fazer menções à obra do poeta G.K. Chesterton, a quem o livro é dedicado.



    Em entrevistas, ambos reforçam como a história foi efetivamente escrita à quatro mãos, pois nem eles próprios sabem quem escreveu exatamente o quê, e isso numa época em que eles trocavam telefonemas sobre o enredo e disquetes... eu, que usei disquetes nas aulas de informática na escola fico só imaginando o perigo. É preciso uma amizade muito forte pra resistir a um disquete engasgado numa CPU, mas é melhor eu parar de tangenciar.



    Publicado em 1990, o enredo do livro é cheio de referências a filmes de espiões, praticamente parodiando cenas em que agentes se encontram secretamente em parques para alimentar patos enquanto trocam informações, algo que Aziraphale e Crowley fazem pela maior parte da trama. Quero dizer, quem realmente vai em parques com o único intuito de alimentar patos? São detalhes assim que fazem um aceno à época da qual os autores (e o mundo) ainda vivenciavam. O Muro de Berlim havia acabado de cair, mas os conflitos indiretos entre as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, deixariam todo um histórico de consequências políticas, militares, tecnológicas, econômicas e sociais entre as duas nações e suas zonas de influência ao redor do mundo.






Direto do Tumblr, eu encontrei esse texto que é exatamente o que eu quero dizer:


"O poder se importa apenas com seus próprios fins. Assumir intenções benevolentes de seres poderosos ou instituições é um engano, e confiar cegamente neles é sob seu próprio risco... e às vezes, sob o risco de um monte de outras pessoas também.

Essa é uma história de Guerra Fria. Especificamente, uma história profundamente anti-Guerra Fria. [...] Crowley e Aziraphale são explicitamente comparados a espiões encapotados desse período que tem muito mais a ver um com o outro do que com seus respectivos superiores.

Essa história vem de um mundo dividido entre duas grandes potências dispostas a brincar de campo minado com literalmente toda a vida na Terra por vantagens geográficas e estratégicas.

Pessoas de ambos os lados ouviram que o seu lado era o Lado Bom e que o outro era o Império do Mal. Mas as pessoas no topo de ambos os lados se importavam apenas em preservar seu próprio poder o quanto possível acima do resto do mundo, não importando o quanto pessoas comuns sofressem. O resultado? Guerras por procuração que mataram milhões (a Guerra Fria nunca foi nada além de quente em países como Vietnã, Afeganistão, Guatemala, El Salvador...) Ditadores foram lançados e apoiados por ambos os lados. Ocupação. Repressão. Tortura. Genocídio. Incontáveis recursos gastos não apenas com a guerra, mas simplesmente em criar a ameaça crível de uma.

E contra esse pano de fundo, a mensagem central de Good Omens é, veja, nós somos iguais. Não há nada fundamentalmente diferente entre as pessoas comuns do "nosso lado" e as que estão do outro lado, e na verdade nós todos temos mais em comum uns com os outros do que com as pessoas no topo de qualquer lado. (O livro usa variações dessa frase múltiplas vezes.) Essas categorias (Céu, Inferno... fronteiras, nações) são apenas formas arbitrárias de dividir o mundo. O lado em que nós deveríamos estar é todos nós contra todas as pessoas que pretendem nos levar direto ao Armageddon."  texto original (em inglês)


Aqui tem informação! E vamos parar de preconceito que o Tumblr não é só putaria, Tumblr também é cultura!






    É claro que existem outros temas e interpretações possíveis, mas eu acho muito difícil ver algo que ressoe tão claramente quanto essa moral: há um subtexto muito claro sobre o perigo da obediência cega à ordens, motivada apenas pela crença de que quem está no poder sabe o que é melhor para nós, ou então sobre como o medo infundido do "inimigo do outro lado" mobiliza ações que, se pensarmos bem, não são para o nosso bem-estar e de outras pessoas comuns, mas apenas para ir de encontro a uma moral pré estabelecida que muito provavelmente não reflete a realidade.


    E falando em moral pré-estabelecida, esse é outro aspecto que eu acho que merece atenção, especialmente nos dias de hoje.


LIVRE-ARBÍTRIO, MENTALIDADE DE GRUPO E POLARIZAÇÃO



SPOILERS ADIANTE! NÃO QUE ISSO VÁ REALMENTE ESTRAGAR SUA DIVERSÃO, SÓ NÃO RECLAME COMIGO DEPOIS...




    Numa narrativa permeada por personagens cinzentos em termos de moralidade, a questão do livre-arbítrio vs determinismo se faz presente através de todos os embates entre personagens de lados opostos: você tem Aziraphale e Crowley simbolizando alguns aspectos simbólicos do Bem x Mal, Anathema, a ocultista e Newt, o soldado caçador de bruxas, Madame Tracy, a vidente e prostituta vizinha do sargento Shadwell, um velho aposentado e misógino, enfim. Spoilers, mas você já deve ter imaginado que no fim, onde existia conflito você termina com três casais, sendo que apenas um deles me pareceu genuíno e os outros dois foram meio forçados, mas... eu desculpo, afinal, eles não tiveram seis mil anos para se conhecerem como os nossos Ineffable Husbands, certo?
 



    O que isso nos mostra, além da minha completa e total adoração de shipper é que o Determinismo é visto no livro como um bullshit total do qual você deve desconfiar fortemente para o seu próprio bem.

    Tem essa parte em especial onde Crowley e Aziraphale debatem até que ponto o livre-arbítrio é mesmo possível:


"Aziraphale havia tentado explicar isso para ele certa vez. A questão, dissera o anjo ―e isso foi por volta de 1020, quando fizeram seu pequeno Acordo ―, a questão era que, quando um humano era bom ou mau, era porque queria sê-lo. Ao passo que seres como Crowley, e claro, ele próprio tinham seu rumo determinado desde o princípio. As pessoas não podiam se tornar inteiramente santas, dissera, a menos que também tivessem a oportunidade de ser definitivamente malévolas.


Crowley pensara nisso por algum tempo e, por volta de 1023, dissera: "Peraí, isso só funciona se todos tiverem igualdade de condições no começo, certo?Você não pode trazer alguém à vida num casebre enlamaçado no meio de uma zona de guerra e esperar que esse alguém se saia tão bem quanto outro que nasceu num castelo."


Ah, dissera Aziraphale, essa é a parte boa. Quanto mais de baixo você começa, mais oportunidades tem.


Crowley dissera "isso é maluquice".


Não, dissera Aziraphale, é inefável."




    Inefável, Aziraphale? Sua putinha alada da Meritocracia! Nessa, eu sou time Crowley desde criancinha! Acho que já sabemos qual lado representa o comunismo nessa Guerra Fria.


Agostinho de Hipona, por Antonio Rodríguez (1636 - 1691)



    Voltando ao assunto, a questão do livre-arbítrio vs determinismo é uma das mais debatidas dentro da filosofia. Em termos gerais, o livre-arbítrio pode ser definido como  a capacidade dos indivíduos de escolherem suas próprias ações. Em termos bíblicos e em especial na Obra de Santo Agostinho, “De Libero Arbitrio”, datado de 395, para o autor, o livre-arbítrio é a possibilidade de escolher entre o bem e o mal. É uma faculdade do ser humano, e de acordo com ele, dada por Deus. Então, partindo desse ponto de vista teológico: fazendo dos homens criaturas racionais, o Criador teria deixado aberta a possibilidade de que Adão, o primeiro homem, escolhesse o mal ao invés do bem, o que condenou todas as futuras gerações humanas pelo pecado original. Apesar disso, segundo ele, Deus deixa aberta também a possibilidade de salvação dos homens através do julgamento de suas ações terrenas, pois segundo o filósofo:


“[…] tudo o que é bom procede de Deus. E tudo o que é justo é bom. Ora, existe algo mais justo do que o castigo advir aos pecadores, e a recompensa aos que procedem bem?” (p. 74, O livre-arbítrio).


    Desse modo, pode-se perceber que a postura do anjo vendedor de livros em meio expediente, é semelhante à de Santo Agostinho: seres humanos possuem livre-arbítrio, sendo, portanto, inteiramente responsáveis por suas escolhas, não importa as circunstâncias.




    O problema dessa argumentação é que, partindo de uma perspectiva comum ao judaísmo, cristianismo e ao islã, com um Deus onisciente (sabe de tudo), onipotente (todo poderoso), onibenevolente (perfeitamente bondoso), onitemporal (está presente em todos os tempos) e onipresente (está presente em todos os lugares), isso abre terreno para várias especulações.


    Por exemplo, se Deus é onisciente e já sabe tudo o que vai acontecer, ainda podemos esperar que Ele mude certos acontecimentos apenas porque estamos pedindo em oração? Se ele é onipotente, significa que ele poderia, mas se o fizer, cairia em contradição com a onisciência. E mais, se Deus já sabia de tudo o que iria acontecer, por que então testar Adão e Eva?


    Bem, um ponto relevante é que saber que algo acontecerá não significa necessariamente tomar parte nesse evento.


    Ainda focando num Deus que é descrito como perfeitamente bondoso e onisciente, então por que Ele submeteria suas criaturas a provações e sofrimentos terríveis, se ele na verdade já sabe o resultado? Tipo, por que fazer Abraão quase sacrificar o próprio filho, se no fundo, ele já sabia que Abraão lhe seria fiel? Parece um daqueles testes de fidelidade do João Kebler, onde o objetivo final nunca era o de testar em si, mas sim o de promover algum tipo de espetáculo para as pessoas.




    E justamente, uma das respostas possíveis é a de que Deus faz isso para que os humanos saibam quem Ele é, o que então, nos faria perguntar por que uma entidade tão poderosa necessitaria de reconhecimento vindo de criaturas tão inferiores em comparação a si próprio, e ainda, qual exatamente a bondade em fazer essas criaturas sofrerem em troca de tal reconhecimento?




    É claro que nem o livro e nem a série se aprofundam nessas questões. Ao longo da série, principalmente, temos apenas Aziraphale acreditando que pode consertar o Armageddon falando com o Todo-Poderoso (ou no caso, Frances McDormand) e Crowley, tendo sido ele próprio um anjo que caiu apenas por ter "feito algumas perguntas", repetindo que isso não vai rolar. Na melhor das hipóteses, Deus não sabe ou não pode intervir, e na pior, Deus simplesmente não se importa, e eu acho que é bastante engraçado e corajoso por parte da série deixar essa ideia de que Deus pode ser cruel em aberto. Ao menos, Deus da Bíblia pode ser bastante vingativo e imperfeito muitas vezes, e sendo essa a versão escrita por humanos, isso diz muito sobre nós.



    No livro, o mais próximo de uma conclusão que os dois chegam sobre isso é um dos diálogos finais, em que Crowley argumenta:


“―Quero dizer, talvez você só queira ver como isso funciona. Talvez seja tudo parte de um grande plano inefável. Tudo isso. Você, eu, ele, tudo. Algum grande teste para ver se o que você construiu funciona direitinho, hein? Você começa a pensar: Não pode ser um grande jogo cósmico de xadrez, tem que ser só um jogo muito complicado de Paciência. E nem se preocupe em responder. Se pudéssemos compreender, não seríamos nós. Porque é tudo… tudo…

INEFÁVEL, disse a figura que alimentava os patos.

―É isso. Obrigado.”


    Não por acaso, a palavra inefável (o que não pode ser posto em palavras) acaba sendo uma espécie de mantra do começo ao fim do livro e da adaptação, sendo dita primeiro por Aziraphale, no Éden:


“―Melhor não especular, sério―aconselhou Aziraphale―Não se pode prever a inefabilidade, é o que sempre digo. Existe o Certo e existe o Errado. Se alguém faz o Errado quando lhe dizem para fazer o Certo, merece ser punido. Pois é…”


    Após essa fala, Crowley o indaga a respeito da espada que ele, como guardião do jardim, portava pouco antes da expulsão de Adão e Eva:


“―Você não tinha uma espada flamejante?

―Pois é…- disse o anjo. Uma expressão de culpa passou por seu rosto e então voltou e acampou por lá.

―Você tinha, não tinha? Flamejava que era uma beleza.

―É… bem…

―Tinha uma aparência bem impressionante, na minha opinião.

    E assim vai, até que Aziraphale relutantemente confessa:



“―Se você quer saber―disse ele, com um certo mau humor―, eu dei a espada.

Crawly (que era a serpente do paraíso e que até então não havia mudado de nome, já que “Crawly” significa algo como rastejante), o encarou.

―Bem, eu não tive escolha― explicou o anjo, esfregando as mãos distraidamente. ―Eles pareciam estar sentindo tanto frio, coitadinhos, e ela já estava grávida, e, com aqueles animais terríveis por lá, e a tempestade se formando, eu pensei, que mal há, e simplesmente falei, escutem aqui, se vocês voltarem vai haver um pandemônio, mas vocês podem estar precisando desta espada, por isso aqui está, não precisam me agradecer, só façam um grande favor a todos e vão embora daqui antes que o sol se ponha.

Ele abriu um sorriso tenso para Crawly.

―Foi o melhor a fazer, não foi?

―Não sei se é sequer possível, para você, fazer o mal―disse sarcasticamente. Aziraphale não percebeu a ironia.

―Ah, assim espero― disse ele. ― Sério mesmo. Isso me deixou tenso a tarde toda.

Os dois ficaram olhando a chuva por um tempo.

―O engraçado― comentou Crawly―é que eu também fico me perguntando se o lance da maçã não foi a coisa certa a fazer. Um demônio pode acabar em maus lençóis se fizer a coisa certa.―Ele cutucou o anjo. ―Engraçado se nós dois tivermos confundido tudo, né? Engraçado se eu tiver feito o bem, e você, o mal, né?

―Não é, não. ―disse Aziraphale.

Crawly se pôs a fitar a chuva. ―É―concordou, mais sério. ―Acho que não.”


    O que esse prólogo espetacular nos diz na verdade é que o buraco da discussão é muito mais embaixo: dois seres que, em tese, seriam determinados desde o começo a se comportarem de um modo específico se questionando a cerca de suas próprias atitudes? Oi? É você, livre-arbítrio?



    Não apenas isso, toda sequência que leva Aziraphale a não somente entregar a espada conferida a ele por ninguém mais, ninguém do que DEUS, mas também pouco tempo mais tarde MENTIR NA CARA DO TODO-PODEROSO (o que de fato, não seria possível, mas mesmo assim) são mais do que prova de que nada é preto-no-branco como ele gostaria de acreditar, pois, se todos simplesmente escolhessem suas próprias ações, então, como um anjo escolheria fazer o mal? Ou mesmo, como qualquer um em sã consciência escolheria isso sabendo que poderá ser punido?


“Para o determinismo, as ações do Homem são determinadas por leis da natureza ou por outras causas e por isso o ser humano não pode ser responsabilizado pelos seus atos.” (fonte)

    Temos dois extremos aqui, o livre-arbítrio extremo e o determinismo puro. Eu disse anteriormente que o determinismo puro é total bullshit de acordo com o tom da história, mas a verdade é que ambos os pontos de vista em seus extremos se mostram claramente imprecisos: dessa forma, nada realmente impede que tanto Crowley quanto Aziraphale tenham atitudes independentes do que seria esperado deles, e paradoxalmente, tais atitudes não existem num vácuo, mas são determinadas por diversos fatores internos e externos.



    Outro exemplo no livro é Anathema Device, a ocultista cujo livro deixado por sua ancestral, a bruxa Agnes Nutter, contém previsões sempre corretas sobre tudo o que acontecerá com o mundo e sua família. Ensinada desde criança a interpretar o livro, Anathema não tem acesso irrestrito às previsões, pois a linguagem em que estão escritas é antiga e Agnes precisou adaptar sua descrição de coisas que não conhecia, como chamar carros de carruagens e assim por diante. Dessa forma, se Agnes sabe tudo o que acontecerá com sua tataratataraneta, podemos dizer que Anathema ainda tem algum livre-arbítrio, ou todas as suas ações estão simplesmente numa espécie de script roteirizado a séculos atrás? Sobre isso, a personagem afirma:


“―Agnes nunca falhou comigo, mas às vezes, eu falho com ela.”


    É fácil traçar uma espécie de paralelo com a relação entre Agnes e Anathema e a relação dos seres humanos e um Deus onisciente. É um paradoxo, pois significa que se ações diferentes do previsto ocorrem, então as previsões de Agnes não são realmente tão justas e precisas quanto alardeado no título do livro (o que é irônico, visto que é repetido diversas vezes em tom de piada que o livro teria vendido mais se as profecias fossem fantasiosas). Claro, tem o detalhe de que Agnes não é Deus, então ela não tem essa obrigação de ser onisciente, mas de oferecer um resultado possível dentre vários.




    Em ambos os casos, tanto Aziraphale quanto Anathema tinham escolhas: Aziraphale poderia ter deixado Adão e Eva desprotegidos,  mas seu coração mole o fez entregar a espada flamejante que, não por acaso, milênios depois se encontra nas mãos de Guerra, numa clara alusão a toda a cadeia de descobertas humanas que levou aonde estamos hoje, com bombas que podem varrer a humanidade do planeta. Bom trabalho, anjo.

Precisamos de mais gifs da Guerra em nossas vidas, é o que eu digo...



    E Anathema poderia ter jogado uma partida de dominó com Newt, mas preferiu encaixar o lego com o hipster que não consegue usar computadores. Pensando bem, ele não é mesmo de se jogar fora, ainda mais com o mundo em perspectivas de acabar...





    Se a mentalidade do "nós contra eles" e a manipulação dessa mentalidade pelos poderes em detrimento das pessoas comuns é um dos principais temas aqui, o tema do livre-arbítrio e nossas responsabilidades quanto a isso é ainda mais central e interligado a esse. Adam, o garoto Anticristo, Anathema, Aziraphale, são os personagens com maiores arcos ao longo da trama e seus conflitos se dão basicamente pela contradição entre suas escolhas e o que se espera deles.




    A esse respeito, Crowley também tem muito a dizer: sendo um demônio, seu "trabalho" é tentar as pessoas a fazerem o mal, mas ele nunca "possui alguém", ou age de modo a forçar alguém a fazer algo que a própria pessoa não faria. Como quando ele faz as linhas telefônicas caírem em Londres, ou na parte em que ele e Aziraphale investigam o antigo hospital das freiras e, como uma piada por uma fala condescendente do anjo quanto à armas, Crowley transforma as pistolas de paintball de um treinamento de funcionários em armas de verdade:


"―Do meu ponto de vista― disse Crowley― , ninguém precisa puxar o gatilho. [...]

―Esse foi um truque bem sujo― disse Aziraphale, enquanto percorriam os corredores vazios: ― Há pessoas lá fora atirando umas nas outras!

―Bem é o que eu digo, não é? Estão fazendo isso por conta própria. É o que realmente querem fazer. Eu só dei uma mãozinha. Pense nisso como um microcosmo do universo. Livre-arbítrio para todos."

 

(Para aqueles incapazes de detectar ironia, isso é só uma piada, que eu roubei do canal Tralhas do Jon por sinal. Desculpa. Até porque, meios de produção se tomam mesmo é na porrada)

    A ideia de que o Mal é uma força sobrenatural agindo nas pessoas como um tipo de ventriloquo, ou mesmo algo que só pessoas "doentes" cometem, precisa acabar porque ela simplesmente não se confirma na realidade: Qualquer pessoa pode cometer crimes e demonstrar comportamento violento. A noção de que somente "psicopatas" podem cometer atos extremos e reprováveis não é corroborado pela ciência, na verdade ela é refutada por vários estudos, dentre eles o que descobriu o "Efeito Lúcifer":


"O Efeito Lúcifer surgiu de um experimento controverso na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, em 1971, que saiu do controle e desencadeou diversos estudos de como diversos fatores externos podem favorecer o comportamento violento de qualquer pessoa.[...] O experimento surgiu do Departamento de Psicologia pelo psicólogo Philip Zimbardo com a intenção de analisar as consequências psicológicas do ambiente prisional. Para isso, 24 homens que não tinham antecedentes criminais, uso de drogas e histórico de comportamento violento foram colocados no porão do departamento, metade em celas com uniforme de prisioneiros e a outra metade do lado de fora com uniforme de guardas. 
O local foi alterado para parecer ao máximo com um ambiente prisional e àqueles que seriam os guardas foram dadas informações sobre como agir. No decorrer do tempo foi possível notar o comportamento de cada um mudando drasticamente até o ponto em que o experimento precisou ser interrompido pelo nível de descontrole, principalmente dos guardas que exerciam um poder degradante e humilhante sobre os prisioneiros que em sua maioria obedeciam e não reclamavam das condições que lhe foram colocadas." (fonte)


    O que esse experimento mostrou foi que determinadas condições e papéis de autoridade e subordinação tem consequências psicológicas. A conclusão é que exercer poder sobre outras pessoas pode revelar aspectos condenáveis em alguém até então considerado "confiável e um bom cidadão".




    O que Crowley faz é criar essas condições propícias para o mal, mas a escolha fica sempre para os sujeitos. O que faz muito sentido, considerando que foi ele "o responsável" pela humanidade poder fazer essas escolhas em primeiro lugar. Desse modo, ele já se encontra num ponto mais ou menos confortável consigo próprio em comparação com os demais personagens, o que faz com que ele seja considerado por muitos uma espécie de bússola moral da história. As mudanças nele são muito menores que a dos outros personagens, tendo muito mais a ver com aceitar que existe alguma bondade dentro dele, ainda que ele seja um demônio muito mal.

"I'm not nice!"



    No fim, Adam precisa escolher entre causar ou não o apocalipse, e sendo ele e sua gangue crianças já muito conscientes das merdas que os adultos estão fazendo e sendo criticados o tempo inteiro pelos adultos ao redor e vistos como "baderneiros" por serem crianças curiosas e questionadoras, essa é uma escolha que tem um certo peso e é interessante como tanto os representantes do Céu quanto do Inferno jogam retóricas cheias de falácia de autoridade em cima do garoto para convencê-lo a seguir com o plano e destruir tudo, só porque "Está escrito".




    A resposta de Adam não poderia ser mais condizente e contra a política polarizadora dos dias atuais:


"―Só não vejo por que todo mundo e tudo tem que ser queimado e coisa e tal― disse Adam. "Milhões de peixes, baleias, árvores, ovelhas e tudo. E não é nem por nada importante. É só pra ver quem tem a melhor gangue. [...] Mas mesmo que vocês ganhem, não vão poder mesmo derrotar o outro lado, porque na verdade vocês não querem. Quer dizer, não pra valer. Vocês só vão começar tudo outra vez. Vão continuar enviando gente que nem esses dois―apontou para Crowley e Aziraphale― para interferir na vida das pessoas. É duro o bastante ser gente do jeito que a gente é, sem outras pessoas chegando e interferindo na sua vida."

Os quatro cavaleiros do não-apocalipse

    Muito se fala em polarização atualmente, e é fácil cair em falsas simetrias. De qualquer maneira, é inegável que os governos atualmente no poder em diversos lugares do mundo estão usando e abusando dessa ferramenta de propaganda e controle de massas, principalmente os políticos de extrema-direita. Na verdade, eu diria que se a polarização já existia naturalmente, a extrema-direita pegou para si esse aspecto de uma tal forma que é praticamente indissociável de sua composição.




    Explicando de forma resumida, a polarização é o que tornou os políticos atuais essas máquinas de expelir falas controversas e cheias de ódio, saindo impunes e ainda aplaudidos. Por quê? Porque atualmente é esse tipo que chama a atenção das pessoas, principalmente na internet. Quem precisa de representantes que pensem no bem comum e buscando consenso com as pessoas, se você pode ter um "mito" que fala tantas coisas "corajosas" que seu eleitorado certamente gostaria de dizer, mas sofreria consequências se assim o fizesse.




    Claro que a internet sozinha não explica o surgimento desse tipo de fenômeno. A instabilidade econômica e o desemprego são fatores que levam à adoção de ideologias extremistas, que se alimentam dos preconceitos, medos e ressentimentos das populações ao mesmo tempo em que se baseiam na nostalgia, no ideal de resgatarem um passado onde tudo era "perfeito". Os nazistas já faziam isso antes mesmo da internet, e é interessante notar as semelhanças entre lemas como "Make America Great Again" e a ideia nazista de "Alemanha para os alemães" e promover um "Reich de mil anos". O próprio "Terceiro Reich" (que significa "reino") vem da ideia de que seria um revival dos dois primeiros "Reichs", que curiosamente, são termos raramente encontrados fora da propaganda nazista e sequer são usados por historiadores.





    É desse modo que, aos poucos, pessoas racionais e até mesmo bem intencionadas, se deixam encantar por lideranças com inspirações e ideais tão condenáveis. Ações que até então seriam consideradas erradas por unanimidade começam a parecer justificáveis com a ajuda do discurso de "nós x eles". Prisões arbitrárias, exílio, tortura, pena de morte, campos de concentração... não é de se estranhar que muitas dessas coisas já estejam implementadas com aval institucional, por exemplo, os campos de "acolhimento" de imigrantes ilegais nos EUA, onde já saíram diversas denúncias de abusos, em especial de crianças e jovens. Aqui mesmo no Brasil, a pena de morte já está em ampla aplicação se você for de determinada cor e classe social.

    Enfim, muita coisa acontecendo, e nada muito bom.



E O NOSSO FIM DO MUNDO, QUANDO VEM?





    Dia 02 de agosto, o dia em que eu comecei a digitar essa resenha, os governos dos Estados Unidos e da Rússia confirmaram a saída de um tratado de desarmamento nuclear, assinado em 1987. O Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, em inglês) proibia o uso de mísseis com alcance entre 500 e 5.500 km. A retirada dos dois países significa mais um passo em direção a uma nova corrida armamentista, desta vez focada não só em armas nucleares mas também em ataques cibernéticos e com todo um novo potencial destrutivo se descortinando (principalmente em outros países).
    Com outro acordo que prevê a manutenção dos arsenais das superpotências em níveis abaixo dos da Guerra Fria  estando pra vencer em 2021, é difícil prever o que está por vir.


    Em meio à ascensão de governos com teor fascista ao redor de todo o mundo e o descompasso entre os líderes mundiais e chefes de estado e as ações que deveriam ser feitas para barrar o aquecimento global garantindo a manutenção de vida na Terra, pode-se dizer que toda preocupação com um possível apocalipse, o apelo renovado dessa história é compreensível.



    Somos bombardeados com lembretes diários das possíveis (e terríveis) consequências para todo esse cenário, mas acho que também é importante lembrar da mensagem talvez mais relevante de Good Omens: nada está determinado até o último instante. Nada está gravado em pedra. Se há algo que podemos manter e que definitivamente vale a pena resgatar, é a esperança na humanidade e na possibilidade de virarmos o jogo. As últimas previsões dos cientistas dão um prazo de doze anos para frear o aquecimento global.



    Até lá, precisamos nos manter firmes e nos lembrarmos sempre de que independente de quem esteja no poder, obediência inquestionável nunca é saudável. Questionar as verdades absolutas e os destinos que outros nos impõe, principalmente nossos governantes, além dos pressupostos que todos nós alimentamos sem autocrítica se mostra cada vez mais importante num mundo dominado por pessoas que querem, a todo custo, distorcer os fatos e a história para sua própria conveniência.





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REFERÊNCIAS:





 

Resenha de mangá: O marido do meu irmão

  Eu vinha escrevendo essa resenha desde agosto, mas só agora em outubro que eu consegui atualizar o blog... Pra vocês verem. Não sei se foi...