Ficha técnica
Editora Record, 39ª edição, 2018
Título original: The Godfather
Autor: Mario Puzo
Tradução: Carlos Nayfeld
Capa: Túlio Cerquize
Olá, meus álbuns novos da Katy Perry! Como vão?
Vou confessar que eu tenho deixado de lado as resenhas por que, além de me darem muito trabalho, eu não tenho lido tantos livros novos nessa pandemia quanto poderia. Uma coisa que a quarentena trouxe para muita gente é essa vontade de nos refugiarmos em coisas que já conhecemos frente a tempos tão incertos. Mas enfim, eu tinha esse livro em casa e não tinha terminado de ler por pura preguiça, então resolvi dar uma chance. Depois de séculos sem lançar uma nova resenha, volto agora com O Poderoso Chefão, de Mario Puzo.
Mario Gianluigi Puzo nasceu em Nova York (1920- 1999), e antes de sua obra-prima, escreveu para revistas e outros livros. Filho de imigrantes italianos, ele cresceu no Hell's Kitchen, um dos bairros mais barra-pesada da cidade na época. Ele serviu na força aérea americana durante a Segunda Guerra e após isso, frequentou cursos de literatura e escrita. À princípio, sua família era contra sua vontade de ser escritor, e aos 46 anos, já com cinco filhos, ele percebeu que precisava focar num retorno financeiro, já que seus livros não tinham sido sucesso em vendas. Após um de seus editores sugerir que ele deveria se focar mais nos aspectos sobre o crime organizado que já existiam em seus livros anteriores. Foi assim que Puzo enfiou o nariz numa pesquisa sobre o assunto e foi tão fundo que o fez ser questionado se ele tinha ligações com a máfia, e os próprios mafiosos ficaram cabreiros com isso. Independente disso, o resultado foi icônico e deu origem à imagem que temos de um todo um gênero literário e do cinema e tv.
Falando sobre cinema, minha segunda confissão é que eu não assisti toda a trilogia dos filmes do Francis Coppola.
"Eu sei, Freddo. Você partiu meu coração." |
Só me lembro de ter visto o primeiro quando eu era pré-adolescente: eu era tipo a colunista cinéfila da família e sempre me interessava em pedir pra alugar um vídeo ou dvd na locadora depois de ler algumas resenhas pela internet. Acho que logo depois que começaram os tiros e estrangulamentos no filme, meu pai começou a ficar um pouco preocupado com o que eu lia por aí. Mesmo assim, eu lembro de ter achado interessante no começo, mas depois apenas chato... Acho que é por que eu era UMA PRÉ-ADOLESCENTE e não um desses caras que curtem endeusar gângsters e citar frases de filmes como se isso fosse o suprassumo da sétima arte e a pura definição de masculinidade.
Enfim, quem sou eu para julgar o Michael Kyle. Acho que em termos de culto, o Poderoso Chefão é o equivalente a um Meninas Malvadas: ambos são filmes que refletem sobre o poder e as relações que o constroem através de hierarquias sociais em contextos bem específicos e para públicos quase diametralmente opostos. Em Meninas Malvadas, o paradigma vítima/agressor é mostrado como um ciclo interminável de bullying e intimidação, assim como em... O Poderoso Chefão.
Do mesmo modo que Cady sucumbe à tentação da popularidade a qualquer custo e se torna o que ela mesma desprezava, Michael Corleone assume os negócios criminosos do pai apesar de inicialmente repudiá-los. A única diferença é que enquanto o arco dramático de Cady acaba com ela renunciando a seu lado mais sombrio em prol das amizades verdadeiras e do entendimento de que a coroa da rainha do baile é só um título e que o poder verdadeiro pertence ao povo, Michael Corleone abraça sua própria sombra, ocupando o lugar que era de seu pai como novo chefe da máfia e da Famiglia, mesmo isso quase custando sua própria família que construiu com sua segunda esposa, Kay. E não, eu não tenho planos de parar de usar comparações e referências a esse filme, então é melhor abandonarem essa resenha agora se você se ofende com isso.
O engraçado é que a cultura introjetou o Poderoso Chefão como O filme da máfia, mas o livro tem muitos outros aspectos também interessantes que vão além dos memes motivacionais com frases icônicas sobre família e masculinidade. Existe uma relação que o autor faz entre a ascensão das máfias nas sociedades com uma espécie de revolta contra o sistema formalmente instituído. Mas antes de sair por aí carimbando o livro como um ode cravado de balas à anarquia, é preciso lembrar que "anarquia" no termo popular e do senso comum não tem nada a ver com o anarquismo (ou pelo menos, muito pouco a ver).
O anarquismo enquanto doutrina política se opõe a toda forma de dominação e hierarquia, tendo por símbolo máximo a luta contra o Estado, o capitalismo e outras formas de opressão. Apesar do termo ter o sentido pejorativo de algo caótico, violento e sem sentido, o anarquismo propõe a superação das dominações e sua substituição por coisas mais construtivas, como autogestão, cooperação e ajuda mútua. É algo bem interessante que eu acabei de ler na Wikipedia tive contato com fontes anteriores, mas eu não sei muito a fundo, então ainda lerei mais a respeito no meu tempo livre. Enfim, apesar de todas as críticas presentes no livro às injustiças e hipocrisias do sistema, Don Corleone e seus asseclas estão mais para perpetradores da anomia do que para insurgentes anarquistas, mas eu ainda vou comentar mais sobre.
"Ah, mas os piratas de One Piece ainda são antifascistas, né?" |
Acho apropriado falar desse livro agora que o Poderoso Chefão parte III terá um remake do Coppola. Eu não tenho uma opinião sobre o filme além do primeiro que eu assisti e do que eu li sobre os demais. Ao que parece o terceiro é uma tremenda batida de trem e os outros dois competem pela posição de destaque, sendo o primeiro um marco no cinema do gênero.
Mas se você for desses que não sabem necas de pitibiriba (gíria velhas, amo) sobre os filmes, aqui vai um resumo:
Era uma vez, uma família muito unida e também muito ouriçada, que também era uma Família da Máfia:
Opa, imagem errada... |
Ah, agora sim. A família Corleone |
Vito Corleone é o Don, o chefão, padrinho e mandachuva de um negócio de azeite. Aparentemente, é um negócio tão bom e lucrativo que se torna mortal para a concorrência e ele tem o suficiente para fechar uma rua em Long Beach e morar em lindas casas de condomínio com a esposa e os quatro filhos: Sonny, Fredo, Michael e a fraquejada Connie . Claro que manter um império como esse não é de graça e para isso ele conta com a confiança e o trabalho de seus valorosos capangas homens: o consigliere Tom Hagen, os caporegimes Clemenza e Tessio e seu subordinado, Paulie Gatto. Ainda temos Luca Brasi, mas ele é um assassino pessoal de Don Corleone, então ele só o usa em casos realmente "especiais".
Além de lucrar com importação de azeite e jogos ilegais, o padrinho também resolve os problemas da comunidade de imigrantes italianos de Nova York, sejam esses problemas algo como mandar para o hospital os agressores da sua filha, arranjar um noivo para sua filha ou conseguir um papel num filme e voltar a ver suas filhas. Céus, tem algo estranho nessa repetição, ou só eu que percebi?
Enfim, como tudo na vida tem um preço, é bom estar preparado para quando o padrinho lhe pedir o favor de volta, conforme diz o diálogo entre Michael e sua namorada:
"— Você tem certeza — falou Kay refletindo — de que não está com ciúme de seu pai? Tudo o que você me contou sobre ele mostra-o fazendo algo por outras pessoas. Ele deve ter um bom coração. — Ela deu um sorriso amarelo. Na realidade, os seus métodos não são exatamente constitucionais.
Michael deu um suspiro. — Acho que a coisa parece assim, mas deixe-me dizer-lhe isso. Você já ouviu falar naqueles exploradores árticos que deixam depósitos secretos de comida espalhados na rota do Pólo Norte? Justamente para o caso de que possam necessitar deles algum dia? Isso é o que representam os favores do meu pai. Algum dia ele estará em cada uma das casas dessas pessoas e será melhor que elas venham ao encontro dele."
O casamento da filha do Don acaba sendo a oportunidade perfeita para fazer pedidos ao chefão, visto que ele não pode recusar nenhum pedido por uma questão de tradição. Dentre outros, Corleone promete ajudar o afilhado e cantor Johnny Fontane a conseguir um papel em um filme que promete ser um sucesso, mas que está sendo barrado para ele pelo produtor Jack Woltz, um velhaco que vive de aliciar atrizes jovens e que está se vingando dele por Johnny ter saído com uma de "suas garotas". Don Corleone manda o afilhado descansar e destaca Tom Hagen para resolver o caso e promete "fazer uma oferta que ele não poderá recusar".
Esse travesseiro entrou agora para minha lista de desejos |
Enquanto isso, Virgil Sollozzo, mafioso conhecido como "turco" no ramo dos entorpecentes, recebe a recusa de Don Corleone em participar de seus "negócios". Aparentemente, ele também não é bom em aceitar recusas e manda dois capangas para encher o padrinho de balaços quando ele e Freddo param numa quitanda para comprar laranjas.
E onde estava Luca Brasi?
"Não é da conta de ninguém com quem ele dorme." diz a militante no Twitter. Ela estava certa e errada. |
Após o assassinato de Luca pelos Tattaglia, Mike, Sonny, Tom e Clemenza discutem os planos e o próprio Michael se oferece para a tarefa de liquidar Sollozzo. Sonny não poderia ser por ele ser temperamental demais e já estar envolvido na cosa nostra, Freddo também não pelo mesmo motivo e por também ter ficado abalado com o ataque, só restando isso, ou correr o risco do homem fazer uma nova tentativa de matar o Don. E aparentemente Mike é mesmo o homem certo para isso, visto que apesar dele ter servido no exército, o mafioso não desconfia de que eles pretendem envolver um "civil" de fora da máfia na guerra entre as famílias e aceita de se encontrarem para renegociar sua proposta.
"— Você liquidará os dois? — perguntou Sonny. — Olhe aqui, garoto, eles não lhe darão medalhas por isso, eles o levarão à cadeira elétrica. Você sabe disso? Isso não é trabalho para heróis, garoto, você não vai atirar em gente a quase dois quilômetros de distância. Você vai atirar quando vir o branco dos olhos deles, como nos ensinaram na escola, lembra-se? Você vai ter que ficar bem pertinho deles e estourar-lhes a cabeça e ver os miolos escorrer pela sua roupa limpinha de bom-moço. Que é que tem a dizer, garoto, você quer fazer isso só porque um policial estúpido lhe bateu? Sonny ainda estava rindo.
Michael levantou-se. — É melhor você parar de rir — falou.
A transformação que Michael sofreu foi tão extraordinária que os sorrisos desapareceram dos rostos de Clemenza e Tessio. Michael não era alto nem de constituição robusta, mas a sua presença parecia irradiar perigo. Nesse momento, ele era a reencarnação do próprio Don Corleone. Seus olhos adquiriram um tom castanho-pálido e seu rosto estava completamente branco. Parecia disposto a atirar-se a qualquer momento sobre o irmão mais velho e mais forte. Não havia dúvida de que se ele tivesse uma arma na mão, Sonny correria perigo; Sonny parou de rir, e Michael perguntou-lhe numa voz extremamente fria: — Você pensa que não sou capaz de fazê-lo, seu sacana?"
Uma outra coisa a ser dita sobre o filho mais novo dos Corleone é que no livro ele é um protagonista muito mais proativo e menos ingênuo do que alguém poderia supor pelo arco de personagem dele ao longo da história: ele praticamente bola toda a enrascada para matar Sollozzo sozinho, além de ter sido o primeiro a chegar no hospital e constatar que Mc Cluskey havia prendido os homens que guardavam seu pai, tudo a mando do turco. Após remediar a situação, ele recebe em silêncio o soco do policial corrupto, soco esse que lhe rende um ferimento e diversas sequelas como dor de cabeça e o nariz escorrendo. Mas ele aguenta firme, porque sabe que não adiantaria revidar e correr o risco de ser preso, ainda mais violando o acordo tácito entre os mafiosos que é evitar confusão com a polícia, e também por saber que em breve terá oportunidade de se vingar.
Fazendo isso, porém, Michael também sabe que uma guerra total entre as cinco famílias da máfia de Nova York explodirá e ao fim de tudo, terá de fugir do país deixando Kay para trás. Mas ele não recua, porque no fim das contas, ele é um Corleone e um ataque a eles precisa de uma resposta.
"Entra no carro otário, vamos cometer alguns assassinatos!" |
Através de um intermediário, eles combinam de se encontrarem em um pequeno restaurante italiano. Já tendo implantado uma arma escondida na caixa de descarga do banheiro do lugar pelos homens de seu pai, Michael entra desarmado no carro dos mafiosos inimigos. Eles fazem uma rápida manobra para terem certeza de que não estão sendo seguidos e então param no restaurante. Michael, Sollozzo e o capitão Mc Cluskey sentam-se e discutem tudo num clima ameno até que o Al Pacino, já com sangue nos olhos, pede para ir ao banheiro.
A sequência toda que se segue é de uma tensão que vai escalando cada vez mais desde a entrada de Mike no carro e o desvio do trajeto até a revista deles e a informação de que seus capangas já haviam revistado o banheiro. De tão tenso, Michael chega a usar de verdade a privada (isso tá no livro, não me culpem) e só depois pega a arma e volta a sentar-se no meio deles:
"Sollozzo estava inclinado na direção dele. Michael com a barriga escondida pela mesa, desabotoou o paletó, e ficou ouvindo atentamente, embora não conseguisse entender uma palavra do que o outro dizia. Aquilo era um palavreado oco para ele. Sua mente se achava povoada de sangue martelante, que nenhuma palavra registrava. Por baixo da mesa, sua mão direita moveu-se na direção da arma metida na sua cintura e ele a soltou.
Nesse momento, o garçom veio saber o que eles queriam para comer, e Sollozzo virou a cabeça para atendê-lo. Michael empurrou a mesa para longe dele com a mão esquerda, enquanto a mão direita impelia a arma quase contra a cabeça de Sollozzo. Sua coordenação era tão perfeita que ele já começara a desviar-se ante o movimento de Michael. Mas este, sendo mais jovem, com os reflexos mais apurados, puxou o gatilho. A bala atingiu Sollozzo em cheio entre o olho e o ouvido, e quando saiu pelo outro lado atirou uma enorme mancha de sangue e fragmentos de crânio no paletó do petrificado garçom. Instintivamente Mike sabia que uma bala era bastante.
Sollozzo virara a cabeça naquele último momento e Michael vira a luz da vida extinguir-se nos olhos do homem tão claramente como o apagar de uma vela. Um segundo apenas se passara quando Michael girou para apontar a arma na direção de McCluskey. O capitão da polícia olhou para Sollozzo com surpresa fleumática, como se isso nada tivesse a ver com ele. Parecia não ter conhecimento do seu próprio perigo. O seu garfo coberto de vitela estava suspenso em sua mão e seus olhos estavam justamente virando-se para Michael. E a expressão do seu rosto, de seus olhos, denunciava uma afronta tão presunçosa, como se agora ele esperasse que Michael se entregasse ou fugisse, que Michael sorriu para ele quando puxou o gatilho.
Este tiro pegou mal, não foi mortal. Atingiu McCluskey em sua grossa garganta de touro e ele começou a engasgar-se espalhafatosamente como se tivesse engolido um grande pedaço de vitela. Então o ar como que se encheu de uma fina névoa de sangue vaporizado que ele tossindo expelia dos pulmões arrebentados. Muito friamente, muito calculadamente, Michael disparou o tiro seguinte no alto do crânio coberto de cabelo branco do capitão. O ar parecia estar cheio de névoa cor-de-rosa. Michael virou-se para o homem sentado perto da parede. Ele não fizera sequer um movimento. Parecia paralisado. Agora cautelosamente mostrava estar com as mãos em cima da mesa e olhava para longe.
O garçom voltava cambaleante para a cozinha, com uma expressão de horror estampada no rosto, olhando fixamente para Michael como se não acreditasse no que vira. Sollozzo estava ainda na cadeira, com um lado do corpo apoiado na mesa. McCluskey, com o corpo pesado puxando para baixo, tinha caído da cadeira no chão.
Michael deixou a arma escapulir de sua mão de forma que ela bateu no seu corpo e não fez barulho. Viu que nem o homem de perto da parede nem o garçom perceberam que ele deixara cair a arma. Deu alguns passos em direção da porta e abriu-a. O carro de Sollozzo estava ainda estacionado no meio-fio, mas não havia sinal do motorista. Michael virou para a esquerda e dobrou a esquina. Faróis se acenderam e um sedan amassado parou perto dele, abrindo rapidamente a porta. Ele saltou para dentro e o carro arrancou para a frente."
E antes que alguém diga "deixe a arma e pegue o canolli" (frase essa ausente no livro), Michael sai do país com tudo já preparado de antemão por Tom Hagen e foge para a Sicília, deixando sua namorada, Kay Adams, totalmente no escuro quanto ao que ocorreu. Apenas a mãe de Michael toma a liberdade de desrespeitar a ordem do marido e de Tom e aconselha Kay a "esquecer seu filho", insinuando assim que ele realmente se tornou um assassino.
Apolônia, primeira esposa de Michael |
Mas voltando para o enredo, como eu já estou um pouquinho de saco cheio nessa altura do campeonato, vou resumir da seguinte forma o que acontece a seguir no livro: logo depois que Michael foge para a Sicília e a guerra entre as famílias estoura, o autor toma meu tempo com DOIS CAPÍTULOS seguidos de Frank Sinatra Johnny Fontane e a trama dele em tentar se entender e voltar a conviver com a ex-mulher e as filhas pequenas. Sobre isso, está escrito:
"De um modo muito astuto, fez Virgínia compreender que não gostaria que ela casasse novamente, não porque tivesse ciúmes dela, mas porque temia pela sua posição de pai. Ele estabelecera que o dinheiro fosse pago a ela de modo tal que seria enormemente vantajoso financeiramente não casar de novo.
Ficava subentendido que ela poderia ter amantes desde que eles não se metessem em sua vida doméstica. Mas nesse ponto ele tinha absoluta confiança nela. Virgínia sempre fora excessivamente tímida e antiquada em questão de sexo. Os gigolôs de Hollywood não conseguiam lavrar nenhum tento quando começavam a cortejá-la visando alguma vantagem econômica ou os favores do seu famoso marido. Johnny não receava que ela esperasse uma reconciliação porque ele quisera dormir com ela na noite anterior. Nenhum dos dois pretendia renovar o extinto casamento.
Ela compreendia a fome de beleza do ex-marido, seu impulso irresistível para mulheres novas muito mais bonitas do que ela. Era sabido que ele sempre dormia com suas companheiras de estrelato pelo menos uma vez. O seu encanto juvenil era irresistível para elas, tal como a beleza era para ele."
"Lágrimas? Imagine, é só um cisco no meu olho" |
Como explicar Don Corleone: masculinidades, glamourização da máfia e da criminalidade branca
"Por que devo ter medo agora? Muita gente tem procurado matar-me desde os meus doze anos de idade." Vito Corleone
No livro existe um capítulo todo dedicado a contar resumidamente a história da origem e ascensão do mafioso com voz do Mum Rá na dublagem brasileira. É um capítulo sensacional, narrando a fuga de Vito ainda criança da Sicília para os Estados Unidos e como ele vai de empregado numa mercearia para chefão no mundo do crime. Eu não sei como isso foi adaptado para o segundo filme, mas vamos falar do personagem em si.
Todo mundo fala sobre o gato que o Don Corleone acaricia no filme ser na verdade um gato de rua que apareceu nos estúdios e que parecia muito contente em estrelar a película, mas o modo como isso influencia a percepção que nós temos do personagem não é improviso: tudo no filme e no livro também é feito de modo a irradiar o carisma dele.
Desde o jeito de velho ranzinza como ele reclama dos "pezzonovanti", até o modo como atende aos pedidos mais urgentes de seus protegidos, Vito Corleone transita entre o mundo dos homens "comuns" e o mundo secreto da máfia como uma lenda e um herói: ao mesmo tempo em que ele encarna o mito estadunidense do "self-made man", o homem que "veio do nada" e se fez sozinho (o que é irônico, para dizer o mínimo), ele também é humanizado o bastante para nos identificarmos com algumas de suas posturas ou reconhecermos defeitos até bem graves nele (defeitos não-óbvios, como ele ser um assassino e criminoso, eu quero dizer):
"Johnny Fontane deu uma gargalhada. — Padrinho, nem todas as mulheres são como as antigas mulheres italianas. Ginny não topará isso.
— Porque você procedeu como um finocchio — disse Don Corleone zombeteiramente. — Você deu a ela mais do que o tribunal mandou. Você não bateu na cara da outra porque ela estava fazendo um filme. Você deixa as mulheres imporem as suas condições e elas não são competentes neste mundo, embora certamente elas sejam santas no céu, enquanto nós homens sejamos queimados no inferno."
"Gente, se é pra cancelar, que seja pelo motivo certo" |
É claro que esse é um ponto de vista totalmente condizente com o período em que a história se passa e principalmente com a cabeça que um idoso mau-caráter teria sendo ainda mais velho que a época, mas enfim, não pra deixar passar as várias vezes que ele é machista, inclusive quando sua própria filha, Connie, se queixa das agressões do marido.
"A mãe demonstrara alguma pena, e até pedira ao pai que falasse com Carlo Rizzi. Mas o pai recusara. — Ela é minha filha — retrucara — mas agora pertence ao marido. Ele conhece o seu dever. Nem o rei da Itália se atreve a meter-se nas relações de marido e mulher. Vá para casa e aprenda a comportar-se de modo que ele não bata em você.
— Você já bateu em sua mulher? — indagou Connie zangada com o pai. Era a sua filha preferida e podia falar com o pai nesse tom impertinente. — Nunca ela me deu motivo para bater nela — respondeu-lhe. E a mãe balançou a cabeça afirmativamente e sorriu.
Connie contou-lhe como o marido lhe havia tirado o dinheiro do presente de casamento e nunca lhe dissera o que fizera com ele. O pai deu de ombros. — Eu teria feito o mesmo, se minha mulher fosse tão insolente como você — acrescentou o pai. Assim, voltou para casa, tanto desnorteada quanto apavorada. Sempre fora a predileta do pai, e não podia compreender a frieza dele agora."
Felizmente, (ou infelizmente para ele) Sonny não comprou essa de não meter a colher em briga de marido e mulher e lavou a alma de todo mundo numa cena épica que eu não colocarei a transcrição das palavras do livro porque acho que é impossível ela ficar a par da catarse que é no filme:
Realmente, um grande homem, em todos os sentidos.
Quero dizer, menos no sentido de trair a esposa rotineiramente, mas ok? |
Assim como o Mal assume a forma de Regina George em Meninas Malvadas, Don Corleone assume a forma de pai, padrinho e até mesmo um ser com vontade quase divina (ou demoníaca, se preferir) como na cena logo no começo, quando ele vai visitar seu amigo e antigo conseglieri, Genco Abbandando. O motivo de Tom Hagen, um irlandês que era amigo de infância de Sonny e acabou adotado por Corleone nessa época, ser o consiglieri é exatamente o do adoecimento de Genco, que no leito de morte e delirando, implora que o padrinho lhe salve:
"— Padrinho, Padrinho — gritou cegamente — salve-me da morte, eu lhe suplico! Minha carne está queimando meus ossos, e sinto os vermes comerem meus miolos. Padrinho, cure-me, você tem poder para isso, enxugue as lágrimas de minha pobre mulher! Brincamos juntos na aldeia, quando crianças, e agora você deixará que eu morra, quando tenho medo do inferno por causa dos meus pecados? — Don Corleone manteve-se calado. — É o dia do casamento de sua filha — prosseguiu o moribundo — você não pode recusar-me isso."
Uma coisa que não deve ser perdida de vista nunca, porém, é o quão fragilmente os ideais familiares propagados pelo chefão se sustentam na prática — a resposta é que não; Como o vídeo do Gustavo Henrique do canal Balcão Pop mostra, Don Corleone vive a falar sobre como o homem deve passar tempo com a família, fazer tudo pela família, mas a grande verdade é que no meio do casamento da filha ele se retira em seu escritório para receber pedidos de tortura e dentre outros crimes e favores. Por mais que tudo tenha o enfeite da retórica furada sobre "amizade" e "família" e etc, é tudo uma questão de negócios.
"Don Corleone ergueu-se de trás da escrivaninha. Seu rosto ainda permanecia impassível, mas a sua voz soava como morte fria. — Nós nos conhecemos há muitos anos, você e eu — disse ele ao agente funerário — mas até o dia de hoje você nunca tinha vindo a mim pedir conselho ou ajuda. Não me lembro da última vez que você me convidou a tomar um café em sua casa, embora a minha mulher seja madrinha de sua única filha. Vamos ser francos. Você rejeitou minha amizade. Você tinha medo de me dever alguma coisa. [...] Agora, você vem a mim e diz: “Don Corleone, faça justiça.” E você não pede com respeito. Não me oferece sua amizade. Você vem à minha casa no dia do casamento de minha filha e me pede para matar, dizendo — aqui a voz de Don Corleone fez uma imitação desdenhosa — “pagarei o que o senhor pedir”. Não, não, eu não estou ofendido, mas o que fiz eu para você me tratar de modo tão desrespeitoso?
Bonasera chorou em sua agonia e medo: — A América era boa para mim. Eu queria ser um bom cidadão. Queria que minha filha fosse americana.
Don Corleone bateu palmas com aprovação decisiva. — Bem dito. Muito bem. Então você não tem do que se queixar. O juiz decidiu. A América decidiu. Leve flores para sua filha e uma caixa de bombons, quando for visitá-la no hospital. Isso a confortará. Fique contente. Afinal de contas, isso não é uma coisa séria, os rapazes eram jovens, ardorosos, e um deles é filho de um político poderoso. [...] A vida é cheia de infortúnios.
A ironia cruel e desdenhosa com que tudo isso foi dito e a raiva controlada de Don Corleone reduziram o pobre agente funerário a uma geléia trêmula, mas ele desabafou corajosamente outra vez: — Peço-lhe justiça.
— O tribunal lhe fez justiça — respondeu Don Corleone laconicamente.
Bonasera balançou a cabeça obstinadamente. — Não. Eles fizeram justiça aos jovens. Não fizeram justiça a mim.
Don Corleone reconheceu essa fina distinção com um aprovador aceno de cabeça, depois perguntou: — Qual é sua justiça?
— Olho por olho — respondeu Bonasera. [...]
— Bem — disse Don Corleone, a mão no ombro do homem — você terá a sua justiça. Algum dia, e esse dia talvez nunca chegue, eu lhe pedirei que me faça um serviço em troca. Até esse dia, considere essa justiça como um presente de minha mulher, a madrinha de sua filha. "
Longe de ser um homem que ascendeu sozinho por conta própria (pleonasmo proposital, ok) na vida, Don Corleone se fez em cima do bom e velho monopólio, galgando posições mais e mais elevadas às custas de muitas vidas. Longe de ser simplesmente um homem fugindo da opressão em sua terra natal, ele se tornou nos Estados Unidos também um agente dessa opressão, assim como todos os outros Dons de suas famílias.
"Como muitos negociantes de gênio, ele entendia que a concorrência livre era ruinosa, o monopólio era eficiente. E assim simplesmente procurava conseguir esse monopólio eficiente. Havia atacadistas de azeite, no Brooklyn, homens de temperamento irritável, teimosos, contrários à razão, que se recusavam a perceber, a reconhecer, a visão de Vito Corleone, mesmo depois que ele tinha explicado tudo a eles com a maior paciência e os mínimos detalhes. Com esses homens, Vito Corleone levantava os braços em desespero e mandava Tessio ao Brookly para instalar o quartel-general e resolver o problema. Armazéns eram incendiados, caminhões carregados de azeite eram propositadamente tombados e o líquido oleoso se espalhava formando lagos nas ruas calçadas do cais.
Um homem impetuoso, um milanês arrogante com mais fé na polícia do que um santo tinha em Cristo, realmente procurara as autoridades para apresentar queixa contra seus compatriotas italianos, infringindo a lei de dez séculos da omertà. Mas antes que a questão pudesse ir um pouco adiante, o atacadista desapareceu, para nunca mais ser visto, abandonando sua dedicada esposa e três filhos, que, graças a Deus, já estavam bem crescidos e em condições de tomar conta do negócio e chegar a um acordo com a Companhia de Azeite Genco Pura."
O tempo inteiro ele e os demais personagens repetem que seria uma hipocrisia julgá-los por suas ações, afinal, os juízes e policiais são tão corruptos e o Estado de modo geral é corrupto e opressor, portanto, eles estariam apenas se "defendendo seus interesses" em meio a toda essa hipocrisia da sociedade sociedosa. Enfim...
"O totem da Máfia é a família, a Famiglia, uma palavra antiga, um tanto pesada nos dias de hoje [...] A Máfia se organiza em torno da Família, da autoridade indiscutível do Boss, com direito de vida e morte sobre todos os membros. O pai de família é a instância suprema de uma organização autoritária e visceralmente hierárquica. Hierárquica, portanto ritual, profundamente respeitosa e exageradamente formal no trato com os superiores, sempre repassado do temor pela represália a uma falta de compostura, ainda que involuntária. Todos os que eram admitidos à presença do chefe de família, serviçais, comerciantes, advogados, padres, políticos, eram obrigados a manter o mesmo respeito que os familiares mais próximos. A Máfia reproduz em seu dia-a-dia o ritual de vassalagem medieval." fonte.
As mulheres da família Corleone são o exemplo claro e cristalino do quanto esse conceito de "família" não é realmente respeitado pelos homens que a integram: Vito nega ajuda à própria filha quando esta se queixa de apanhar do marido; Sonny trai a esposa regularmente com uma amante; Freddo engravida inúmeras garotas num dos hotéis gerenciados por "amigos" da família, mandando-as abortarem com o mesmo médico que depois operaria a amante de Sonny (o que é hipócrita se considerarmos os valores profundamente conservadores dos Corleone). Ao fim, Michael mente para a esposa sobre ter matado o cunhado e a submete a mesma vida que sua mãe levou, uma vida de silêncio em que ela não pode fazer perguntas sobre o que está de fato acontecendo. O final do livro parece até ok, se desconsiderarmos isso tudo, mas pelo que eu soube, as continuações exploram ainda mais essa situação de opressão patriarcal e chega a ser ridículo como as pessoas simplesmente não captam a mensagem.
"Eu vou falar só mais uma vez: Não é pra idolatrar a porra do Bope!" |
"A Sra. Corleone sempre perguntava por que Kay não pensava em se tornar católica, ignorando o fato de que o filho de Kay já tinha sido batizado como protestante. Assim, Kay sentia ser apropriado perguntar à velha senhora se ela ia à igreja todas as manhãs, por ser uma parte necessária do credo católico.
Pensando que isso pudesse impedir Kay de se converter ao catolicismo, a Sra. Corleone respondeu: — Oh, não, não, alguns católicos só vão à igreja na Páscoa e no Natal. A pessoa vai quando tem vontade de ir.
Kay deu uma gargalhada e perguntou: — Então por que a senhora vai toda manhã?
De um modo completamente natural, mamãe Corleone respondeu: — Eu vou por meu marido — ela apontou para o chão — para que ele não vá para lá. — Fez uma pausa e acrescentou: — Faço orações pela alma dele todo dia para que ele vá lá para cima — e apontou o céu."
As mulheres dos Corleone no fundo sabem que seus maridos não merecem ir para o céu. Elas sabem que tudo isso é errado, mas não se posicionam contra, não exercem nenhum poder nesse âmbito. O máximo que podem fazer é manter as aparências, ajudar a sustentar a máscara moral que esconde toda a sujeira feita por eles enquanto se veem aprisionadas pela lógica que diz "protegê-las" mas que na verdade nunca pensa realmente no bem-estar delas, do contrário, cessariam de vez as atividades criminosas.
E falando em atividades criminosas:
"Por trás de cada fortuna há um crime. - Balzac"
A citação que abre o livro não poderia ser mais bem colocada. Num mundo capitalista que valoriza mais e mais o poder e o dinheiro acima de todas as outras coisas, não é de se estranhar a apropriação que os coaches fizeram do Poderoso Chefão e outros filmes da máfia.
"Uma metodologia baseada em filmes de máfia que você já viu, mas totalmente diferente de tudo que você já viu", breve num coach perto de você. |
Como eu disse antes, eu não julgo quem gosta dos filmes ou do livro, mas não é mesmo incrível que uma obra que critica o poder patriarcal e o modo inconsequente tipicamente capitalista de lucrar a qualquer custo e passando por cima de tudo e todos seja usado para promover a mesma doutrina criticada. As pessoas não recebem a mensagem. É isso.
Não que outros livros da época não trouxessem elementos semelhantes, com gangters e mau-feitores, mas o que Mario Puzo fez ao escrever esse livro foi dar mais humanidade aos bandidos até então representados de forma quase cartunesca e mesmo preconceituosa. Puzo é italiano e, por mais que a escrita e seus personagens tenham eles próprios agora se tornado os clichês do gênero máfia, foi uma inovação para uma época em que italianos e irlandeses eram retratados como "bandidos" sem conflitos interiores nem cultura própria ou idiossincrasias. Humanidade em outras palavras.
"Aquela visão dos italianos como “o outro”, combinada com a ideia de que as regras rígidas dos mafiosos excluíam o envolvimento com quem não fizesse parte do seu meio, tornava os gangsters menos ameaçadores. “De um modo geral, as pessoas têm a impressão de que se eles não têm qualquer contato com as coisas que a máfia fazia – sem drogas, sem empréstimos e sem jogos ilegais, os admiradores da máfia não tinham nada a temer”. [...] Porque sua violência parecia dirigida a suas próprias comunidades, e a ninguém mais, tornou-se fácil romantizar a história." (fonte)
Substitua "milicianos" por "mafiosos" |
A minha crítica é menos à obra em si e mais sobre essa espécie de culto a séries e filmes sobre crimes ( e não por acaso, cometidos por brancos). Nossa visão cultural sobre criminalidade é dúbia: bandido bom é bandido morto, contanto que esse bandido seja negro, pobre e traficante na favela.
Assim como Vito Corleone, Frank Costello reprovava o tráfico de entorpecentes e se recusou a entrar nele. Mas será que faz tanta diferença assim, considerando todos os outros crimes? |
Anomia social e o Estado de Direito
Aviso de Gatilho: aliciamento de menores e pedofilia
Harvey Weinstein, ex-produtor preso por ter estuprado e agredido sexualmente mais de 80 mulheres ao longo da carreira. |
Assim, não é de se estranhar que numa sociedade como a nossa, fundada em valores tão hipócritas, algumas pessoas realmente achem que grupos paramilitares como as milícias possam ser consideradas "boas para a sociedade" de alguma forma. A justiça brasileira não puniu realmente os torturadores agentes da ditadura militar assim como também não pune os torturadores e executores de agora que agem à mando do Estado. E essa dança segue, com as autoridades fingindo que se importam com "os princípios de dignidade humana" e a sociedade em retorno fingindo que não vê os corpos se empilharem ou desaparecerem enquanto rezam por uma salvação que sabemos não merecermos de todo.